ANDARILHO
Caminhava a esmo, as pernas comandando o movimento, o corpo mera resposta à vontade mecânica.
A noite possuía uma atmosfera ímpar, talvez a hora em que mais se sentia viva.
As Três Marias divisavam o firmamento com o restante das estrelas e a lua que está no crescente.
Já, já, chega a cheia. E de uma forma furtiva já avisava que os líquidos estão começando a entrar em ebulição, uma tormenta interna que nem sempre é capaz de ser minimizada, uma vontade errante de estar em aceleração, não importando aonde chegar.
Isso a faz lembrar de um escritor, um que criou uma cidade inteira imaginária, com bares, pessoas, cotidiano. O protagonista era ele mesmo, jornalista que trabalhava num periódico, diferente da sua ocupação real. O velho saía à noite para tomar umas e outras e observava as pessoas, as que se sentavam perto dele. As roupas, o jeito, o tom da pele, o que as mãos diziam, o que o corpo refletia. Rabugento, mal humorado, um ancião à espera da morte.
No mundo real, o jovem perambulava à noite, sem rumo. Vestia a primeira roupa que encontrava pela frente e saía sem destino. Adorava sentir a chuva caindo na face e inundando a alma. Sensação esquisita essa, a mesma que ela sentia tantas vezes. Parece que entra num transe, os seres passam, as luzes dos faróis também e a onipotência cresce no mesmo diapasão.
Hoje, caminhava, cruzando com amigos, sorriu, dividiu algumas impressões, mas continuou o trajeto, sem destino. O andarilho, o que navega por entre ideologias, pensamentos e sensações indecifráveis. A lua entre as nuvens convidava à reflexão, a uma necessidade estranha de partilhar seu silêncio e a música que só ela ouvia. O vento dissipou o que cobria as estrelas e lá estava o Cruzeiro do Sul, cruz que carrega no peito, sinais talhados ao acaso pelo sol na pele, tatuando o coração.