segunda-feira, fevereiro 07, 2005

O QUE A MENTE APRISIONOU NOS ÚLTIMOS DIAS...



"Pra que preciso de pés se posso voar?"
(Frida Kahlo)



"As obsessões dispensam preliminares".
(Cole Porter)

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

NO PRINCÍPIO, ERAM AS DEUSAS

Em Çatal Huyuk, na Turquia, a estatueta de uma mulher sentada num trono e
ladeada por duas panteras, em cujas cabeças ela coloca as mãos, sugere ao
mesmo tempo a imagem da mãe e da senhora da natureza. Suas formas generosas
- quadris largos e seios grandes- reforçam ainda mais essa idéia. O nome da
figura feminina é Pótnia, a deusa de Çatal Huyuk, a mais antiga cidade que
se conhece do período Neolítico, cerca de 10 mil anos atrás. De Pótnia
nasceram outras divindades femininas também adoradas pelos homens pré-
históricos. Sua estatueta, esculpida por volta de 6500 a.C., foi uma das
muitas encontradas na Europa e no Oriente Médio, algumas mais antigas, do
Paleolítico Superior (de 50 mil a 10 mil anos atrás).

Essas descobertas levaram historiadores e arqueólogos a sugerir que, bem
antes de venerar deuses masculinos, os antepassados do homem teriam adorado
as deusas, cujo reinado chegou até a Idade do Bronze, há cerca de 5 mil anos


Não se sabe a rigor o exato significado daquelas estatuetas, até porque
pouco ou quase nada se conhece dos costumes dos homens pré-históricos. Mas
não resta dúvida de que por um bom tempo as deusas reinaram sozinhas,
deixando os poderes masculinos à sombra. Em seu livro Um é o outro, a
filósofa e professora francesa Elisabeth Badinter tenta explicar a
supremacia feminina a partir do que se supõe teriam sido as relações entre
homens e mulheres naquelas épocas distantes.

A idéia é que o homem do Neolítico-ao contrário dos seus antecessores do
Paleolítico, que eram caçadores, e dos seus descendentes da Idade do Bronze,
guerreiros-dedicava-se à criação de rebanhos e à agricultura. Ou seja, já
não era necessário arriscar a vida para sobreviver. Nesses tempos
relativamente pacíficos, em que a força bruta não contava tanto como fator
de prestígio e as diferenças sociais entre os sexos se estreitavam, é bem
possível que deusas-e não deuses-tivessem encarnado as principais virtudes
da cultura neolítica.

Entre as centenas de estatuetas encontradas, algumas têm em comum os seios
fartos e os quadris volumosos como Pótnia. Talvez a mais famosa seja a Vênus
de Willendorf, encontrada às margens do rio Danúbio, na Europa Central. Nela
os seios, as nádegas e o ventre formam uma massa compacta, de onde emergem
a cabeça e as pernas - na verdade, pequenos tocos. Igualmente reveladora é a
Vênus de Lespugne, descoberta na França: embora mais estilizada, guarda as
mesmas características de sua irmã de Willendorf.

Mas, das esculturas pré- históricas encontradas até hoje, são raras as que
apresentam os traços femininos tão exagerados - o que dá margem a um debate
sobre o que significava afinal a figura feminina (devidamente divinizada)
nos primórdios das sociedades humanas. Os historiadores tendem a achar que
os primeiros homens a viver em grupos organizados davam mais importância à
sexualidade feminina do que à fertilidade, embora não seja nada fácil
separar uma coisa da outra. No entanto. a imagem à qual acabaram associadas
foi a da maternidade. Há quem não concorde. "Traduzir o culto dos ancestrais
às deusas como simples exaltação à fertilidade é simplificar demais",
comenta a historiadora e antropóloga Norma Telles, da PUC de São Paulo, que
estuda mitologia praticamente desde criança. "Na realidade, a deusa não é
aquela que só gera. Ela é também guerreira, doadora das artes da civilização
criadora do céu, do tecido e da cerâmica, entre muitas outras coisas."

De fato, em muitos mitos, a deusa aparece como quem dá o grão aos homens, e
não apenas no sentido literal de nutrição. Assim, por exemplo, Deméter,
venerada pelos gregos como a deusa da colheita, ajudava a cultivar a terra -
arar, semear, colher e transformar os grãos em farinha e depois em pão.
Deméter ensinava ainda os homens a atrelar as animais e a se organizar. Os
gregos explicaram a origem do mundo com outro mito feminino: o da deusa Gaia
Doadora da sabedoria aos homens, ela limitou o Caos-o espaço infinito-e
criou um ser igual a ela própria: Urano, o céu estrelado.

Pouco depois, Eros, símbolo do amor universal, fez com que Gaia e Urano se
unissem. Desse casamento nasceram muitos filhos e, assim, a Terra foi
povoada. A crença de que o Universo foi criado por uma divindade feminina
está presente em quase toda parte.

Ísis, a mais antiga deusa do Egito, tinha dado a luz ao Sol. Na Índia, Aditi
era a deusa-mãe de tudo que existe no céu. Na Mesopotâmia, Astarte, uma das
mais cultuadas deusas do Oriente Médio, era a verdadeira soberana do mundo,
que eliminava o velho e gerava o novo. Essa idéia aparece com clareza nas
efígies datadas de 2 300 a.C., que mostram Astarte sentada sobre um cadáver.
Também para os chineses foi uma deusa-Nu Gua - quem criou a humanidade. Seu
culto apareceu durante o período da dinastia Han (202 a.C.-220 d.C.).
Representada com cabeça de mulher e corpo de serpente, a venerável Nu Gua
encarnava a ordem e a tranqüilidade.

Os chineses dizem que, cavando barro do chão, ela moldou uma figura que,
para sua surpresa, ganhou vida e movimento próprio. Entusiasmada, a deusa
continuou a moldar figuras, mas a natureza mortal de suas criaturas a
obrigava a repetir eternamente o trabalho. Por isso, Nu Gua decidiu que os
seres deviam se acasalar para se perpetuarem-daí também ela ser considerada
pelos antigos chineses a deusa do casamento. Do outro lado do mundo, na
América pré - colombiana, os astecas tinham em Tlauteutli sua deusa da
criação. Para eles, o Universo fora feito de seu corpo. Os maias tinham
igualmente sua deusa-mãe. Era Ix Chel. De sua união com o deus Itzamná
nasceram os outros deuses e os homens.

Com o passar do tempo, deuses e homens passaram a dividir com as deusas o
espaço no Panteão, o lugar reservado às divindades. Para Elisabeth Badinter,
isso acontece quando a noção de casal vai deitando raízes nas sociedades.
Pouco a pouco, da Europa Ocidental ao Oriente, "reconhece-se que é preciso
ser dois para procriar e produzir", escreve ela. Mas o culto à deusa - mãe
ainda não é substituído pelo do deus - pai. O casal divino passa a ser
venerado em conjunto. As deusas só serão destronadas com o advento das
religiões monoteístas, que admitem um só deus, masculino. Com a difusão do
cristianismo, as antigas deusas são banidas do imaginário popular.

No Ocidente, algumas acabaram associadas à Virgem Maria, mãe do Deus dos
cristãos, outras se transformaram em santas. Mas outras ou foram excluídas
da história ou acusadas pelos padres de demônios e prostitutas. As deusas
das culturas indo-européias tinham em comum o poder de criar, preservar e
destruir-davam a vida e recebiam de volta o que se desfazia. Esse aspecto
destrutivo das divindades femininas foi o mais atacado pelos inimigos do
politeísmo. A suméria Astarte, por exemplo, não escaparia à ira nem dos
profetas bíblicos nem dos primeiros cristãos: para uns e outros, ela era a
encarnação do diabo.

No império babilônico, Astarte foi venerada sob o nome de Ishtar, que quer
dizer estrela. Nos escritos babilônicos, ela é a luz do mundo, a que abre o
ventre, faz justiça, dá a força e perdoa. A Bíblia, porém, a descreveria
como uma acabada prostituta. A importância dada ao lado violento, destrutivo
talvez explique por que a deusa hindu Kali Ma aparece no filme de Steven
Spielberg, O templo da perdição, como a encarnação da violência. Ela é a
sanguinária figura em nome da qual se matam e torturam adultos e se
escravizam crianças.

No entanto, para os hindus, mais especialmente para os tantras - adeptos de
uma derivação do hinduísmo -, Kali é a deusa da transformação e nesse
sentido mais filosófico é que ela é destruidora, da mesma forma como a
passagem do tempo destrói. Representada como uma mulher negra com quatro
braços e uma serpente na cintura, pode aparecer também com um colar de
crânios no colo e uma cabeça em cada mão.

Em seus templos, espalhados por toda a Índia, realizavam-se sacrifícios de
búfalos e cabras. "Para os orientais, Kali é a desintegração contida na vida
visão essa que nós ocidentais não temos", interpreta a antropóloga Norma
Telles. Se Kali foi vista como deusa sanguinária, outras divindades
compensavam tanta violência. Sarasvati, a deusa dos rios, era para os hindus
a inventora de todas as artes da civilização, como o calendário, a
Matemática, o alfabeto original e até os Vedas, o texto sagrado do hinduísmo


Também na América pré-colombiana, sobretudo entre os astecas, o culto às
deusas e deuses incluía muitas vezes sacrifícios humanos. A deusa Tlauteutli
é um bom exemplo. Um dia, os deuses descobriram que ela ficaria estéril, a
menos que fosse alimentada de corações humanos. Na verdade, os astecas
tinham uma visão apocalíptica do mundo: se não alimentassem a deusa, a Terra
se acabaria.

Mas, à medida que começava a crescer o culto à deusa da maternidade,
Tonantzin, diminuía o interesse dos astecas pelos deuses aos quais se faziam
sacrifícios sangrentos. Mais tarde, com a chegada dos conquistadores
espanhóis, Tonantzin foi identificada com a Virgem Maria. Isso acabaria
acontecendo também com a deusa Ísis. Cultuada no Egito e no mundo greco -
romano, ela representava a energia transformadora. Casada com o deus Osíris,
morto pelo próprio irmão, Ísis não sossegou enquanto não lhe restituiu a
vida. A lenda conta que as enchentes do Nilo eram causadas pelas lágrimas da
deusa que pranteava a morte do amado. Por isso, as festas em sua homenagem
coincidiam sempre com a época das cheias. É evidente que, ao festejá-la, os
egípcios comemoravam a generosa fertilidade do rio Nilo. Nos primeiros
séculos cristãos, Ísis passou a ser identificada com Maria.

Já a deusa Brighid, cultuada pelos celtas, ancestrais dos irlandeses, foi
transformada pelo cristianismo em Santa Brigida. A veneração daquele povo
por Brighid era tanta que ela era chamada simplesmente "a deusa". Dona das
palavras e da poesia, era também a padroeira da cura, do artesanato e do
conhecimento. As festas em sua homenagem se davam no dia 1º de fevereiro,
antecipando a chegada da primavera. Na história cristã, a santa nasceu no
pôr-do-sol, nem dentro nem fora de uma casa, e foi alimentada por uma vaca
branca com manchas vermelhas. Na tradição irlandesa, a vaca era considerada
sobrenatural.

Antes mesmo da chegada das religiões monoteístas, os mitos dizem que o
convívio entre deuses e deusas começou a se tornar difícil e a igualdade dos
poderes divinos começava a ficar abalada. Assim, por exemplo, Amaterazu, a
deusa japonesa do Sol, de quem descendiam os imperadores, não se dava muito
bem com o deus da tempestade. Conta a lenda que certo dia ele foi visitar os
domínios da deusa e acabou por destruir seus campos de arroz. Furiosa,
Amaterazu resolveu vingar-se trancando-se numa caverna - o que deixou o
mundo às escuras. Depois de um tempo, como ela não saísse da caverna, uma
multidão de deuses e deuses menores decidiu armar uma estratégia para
convencê-la a mudar de idéia.

Assim, colocaram diante da caverna um espelho que refletia a imagem do deus
da tempestade, como se ele estivesse enforcado numa árvore, e começaram a
dançar.

Atraída pela música, a deusa decidiu sair para ver o que acontecia. Ao
deparar com a imagem no espelho ficou feliz e voltou ao mundo. Com isso,
tudo se normalizou e os dias continuaram a suceder às noites. Outro exemplo
dos conflitos entre as divindades é o caso da deusa grega Deméter e seu
marido Hades, o deus do mundo dos mortos. Eles começaram a brigar pela
guarda da filha Perséfone e a questão só foi resolvida com a mediação de
Zeus, o deus supremo do Olimpo.

Salomonicamente, ele determinou que a menina ficasse com cada um seis meses
por ano. Das deusas veneradas no mundo antigo, não houve tantas nem tão
famosas como as da mitologia greco - romana. Afrodite (Vênus, em Roma)
talvez fosse a mais popular de todas, por encarnar o amor e as formas belas
da natureza.

Já Ártemis (Diana) era a caçadora solitária, senhora dos bosques e dos
animais. Seus lugares preferidos eram sempre aqueles onde o homem ainda não
tinha chegado. Atena (Minerva) protegia a cidade, as casas e as famílias. O
predomínio que as divindades femininas exerceram ao longo do tempo levou
alguns pesquisadores do século XIX a supor que na pré-história as mulheres
detiveram alguma forma de autoridade política. Não há registros
arqueológicos que confirmem isso - hoje os especialistas não admitem que
tenha existido alguma sociedade cujo controle estivesse com as mulheres. Mas
também é certo que nos tempos pré-históricos, quando era outra a divisão
social do trabalho, as mulheres tinham um papel preponderante na luta pela
sobrevivência do grupo. É impossível saber com exatidão quando e por que
deixou de ser assim. De uma coisa, porém, não se duvida: foram os homens
quem primeiro traçaram a mitologia das deusas.

Por Edward Burne-Jones