quinta-feira, fevereiro 28, 2002

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o nosso tempo de ventura.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e a alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires, que antes se desgarrava em arrabaldes para a planície incessante, voltou a ser a Recoleta, o Retiro, as apagadas ruas do Once e as precárias casas velhas que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas; Demócrito de Abdera arrancou-se os olhos para pensar; o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói; flui por um manso declive e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto, as mulheres são o que foram faz já tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isto deveria atemorizar-me, mas é uma doçura, um regresso.
Das gerações dos textos que há na terra só terei lido uns poucos, os que continuo lendo na memória, lendo e transformando.
Do Sul, do Este, do Oeste, do Norte, convergem os caminhos que me trouxeram a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos, mulheres, homens, agonias, ressurreições, dias e noites, entressonhos e sonhos, cada infimo instante do ontem e dos ontens do mundo, a firme espada do dinamarquês e a lua do persa, os atos dos mortos, o compartilhado amor, as palavras, Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las.
Chego a meu centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

Jorge Luis Borges

quarta-feira, fevereiro 27, 2002

Um sonho espiralando dentro de uma fita-cassete desbotada...
Eu sou a escrava da Lua, sem ela sou nada.
1974, Cabul
Ele cantava para meninas de rostos roliços e luminosos desfalecendo.
Meninos carregam rádios portáteis para gravar cada concerto.
Então, para impressionar as meninas de olhos compridos e negros,
eles tocam suas fitas nos parques por perto.
Meus pais podem ter se conhecido assim.
A voz de Ahmad Azhir embrulhando dois corpos jovens com uma fita,
enquanto ao fundo minha mãe é repreendida pela mãe dela.
Mas isto é só um capricho dentro de uma canção...
A mãe também pode ter sido um cisne.
Olhos tão negros drenam a manhã de sua luz.
Ele primeiro sentia a beleza dela na medula dos ossos dele.
O pai nos conta isto enquanto ela se deixa levar para fora da sala
e o volume da saia faz com que redemoinhos de ar rocem nossa pele.
Ele muda o nome dela para o de uma flor com um rosto incandescente
e veias finas do verde mais pálido. Uma flor como a Lua.
O casamento da mãe e do pai foi arranjado pelas anciãs.
Mas houve um tempo antes disto: quando era uma menininha
com fitas brilhantes tremulando na ponta das tranças,
ela escalou muros para entregar cartas de amor às meninas
por quem ele tinha uma queda.
Anos mais tarde, eles estavam comprometidos e recitando poemas de amor
numa cidade que flutuava no perfume das laranjeiras.

(Trecho do livro “Drop by drop we make a river: a collection of Afghan writings from 1978-2001”, de Zohra Saed)

terça-feira, fevereiro 26, 2002

Vibra do cio subtil da luz,
Meu homem e afã
Vem turbulento da noite a flux
De Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim,
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artêmis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da âmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nás que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente - do mar sem fim
(Iô Pã! Iô Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte leão -
Vem, está fazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
Ó Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã Pã! Pã.,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Iô Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã

Tradução: Fernando Pessoa

segunda-feira, fevereiro 25, 2002

Alguns acreditam que deriva do eslavo a palavra Odradek e querem explicar sua formação
mediante essa origem. Outros do alemão e admitem apenas uma
influência do eslavo. A incerteza de ambas as interpretações é a melhor prova de
que são falsas; além disso, nenhuma delas nos dá uma explicação da palavra.
Naturalmente ninguém perderia tempo em tais estudos se não existisse
realmente um ser chamado Odradek. Seu aspecto é o de um carretel de linha,
achatado e em forma de estrela, e a verdade é que se parece feito de linha, mas
de pedaços de linha, cortados, velhos, emaranhados e cheios de nós, de todos os
tipos e cores diferentes. Não é apenas um carretel; do centro da estrela sai uma
hastezinha e nesta se articula outra em ângulo reto. Com a ajuda desta última
de um lado e um dos raios da estrela do outro, o conjunto pode ficar em pé como
se tivesse duas pernas.
Seríamos tentados e crer que esta estrutura teve alguma vez uma forma
adequada e uma função, e que agora apenas está quebrada. Entretanto, esse não
parece ser o caso; não há pelo menos nenhum sinal disso; em parte alguma se
vêem remendos ou rupturas; o conjunto parece sem sentido, porém completo à
sua maneira. Nada mais podemos dizer, porque Odradek tem extraordinária
mobilidade e não se deixa capturar.
Tanto pode estar no forro, como no vão da escada, nos corredores, no saguão. Às
vezes passam-se meses sem que alguém o veja. Terá se aninhado nas casas
vizinhas,mas sempre volta à nossa. Muitas vezes, quando cruzamos a porta e o
vemos lá embaixo, encostado ao balaústre da escada, temos vontade de falar-lhe.
Naturalmente não se fazem a ele perguntas difíceis, mas sim o tratamos - seu
diminuto tamanho nos leva a isso - tal qual uma criança. "Como te
chamas?"perguntam-lhe. "Odradek",diz. "E onde moras?" "Domicilio Incerto",
responde , e ri, mas é um riso sem pulmões. Soa como um sussurro de folhas secas.
Geralmente o diálogo acaba aí. Nem sempre se conseguem essas respostas; por
vezes gerada um silêncio, como a madeira de que parece ser feito.
Inutilmente me pergunto o que acontecerá a ele. Pode morrer? Tudo que morre
teve antes um objetivo, uma espécie de atividade, e assim se gastou; isto não
acontece com Odradek. Descerá a escada arrastando fiapos frente aos pés de
meus filhos e dos filhos de meus filhos? Não faz mal a ninguém mas a idéia de que
possa sobreviver-me é quase dolorosa para mim.

Franz Kafka

sexta-feira, fevereiro 22, 2002

Percorro os quatro cantos da terra... um aspecto vulcânico impede que o ímpeto receba freio. Largo meus mais doces beijos. Um aconchego de edredons perfumados.
Um pouco de menina, um canto de sereia, mulher.

Crio canção em suas palavras, entrego-me às fantasias, às estórias de princesa que ouvia na infância. É o amor que chega por meio de seu cavalo branco.
A chuva molha a terra lá fora, espalhando no ar o perfume que se funde às minhas entranhas. Misturo todos os ingredientes no grande caldeirão. É o útero universal chamando por mim. Um fog de letras invadindo o espaço que estava desocupado.

Falo de muso, de resgates, e ele sorri de volta.
Diz que ama. Eu não acredito.
Fala de olhos brilhando, diz que sou linda.
Confundo-me, perco o sentido, gosto.
Tenho medo, muito medo. Receio desse encontro.
Será que serei traída mais uma vez pelo ímpeto marciano mas derrubada pela enxurrada do coração? Não sei.

Faço um ensaio pra você, uma dança ritual. Apresento-me como madona negra, em espartilho, punhal, botas negras. No meio do cinturão um ferrão fálico. A escuridão ganha espaço nessas linhas. Fronteiras embutidas, ainda encobertas, difusas.
As asas abrem-se, lanço-me no espaço....vampira a abraçar-te na imensidão do céu, no rodopio da folha seca que cai da árvore.

Nasce um broto, uma ramificação a mais. A fruta está madura, pronta para ser comida no pé. Inicia-se a frenética salivação que ocorre ao mirar o que se deseja. A primeira dentada, o pedaço esfregando-se pelas papilas indecentes. Uma comoção provocada pelo mel que escorre pelo canto da boca. É satisfação embrulhada nas gulodices do desejo.

quinta-feira, fevereiro 21, 2002


SHOW
...e ela sentada num banco alto, com os cotovelo apoiados no balcão olhava o refrigerante à sua frente, ninguém mais ali, apenas barman entediado, silêncio, calor sufocantes, a cidadezinha dormia.
– Por que não liga essa droga de ventilador?
– Nem pensar – falou o barman – teus trocados não compensam.
Ela acompanhou com os olhos as moscas zoando em torno de um pedaço de torta, a barata perto do liquidificador.
– Não dedetiza essa espelunca?
– Saco cheio? não venha pra cima de moi, ta ?
...estava cheia da vida que levava, solitária num casamento insuportável, levantara da cama vazia depois do pesadelo, ele não estava, nunca estava, vagou pela casa sem vida, sem alma, parecia que ninguém a habitava, ela era ninguém, sentiu – se culpada, uma culpa inocente, o encanto nascido morto, a vida invisível, onde agarrar – se? lembrou – se de um momento da infância, passeando com uma amiga, em cada uma sensação de infinitas possibilidades, a amigo de repente dirigiu – se para ela: “daqui um ano algo extraordinário nos acontecerá” nada aconteceu, nem nos muitos anos seguintes...que seja agora, que seja agora...o futuro insondável, o mistério do que ainda virá...vestiu – se apressada, apanhou as chaves do carro...salto para o desconhecido....
– Por que me persegue? – escutou a voz do homem sentando ao lado dela, ele entrara silencioso, dirigiu – se ao barman – manda uma coca!
Não respondeu, não precisava, o vira há dias no posto ao colocar gasolina no carro, o jeito calmo, o andar felino, os jeans apertados...
– Por que me persegue?- repetiu.
– Quem me persegue é você – respondeu a mulher.
O homem sorriu abanando a cabeça como quem diz “ essas mulheres!”,
– E ele?- falou o homem - seu marido?
– Saiu...você é casado?
– Fui!
O barman olhou o relógio:
– Tá na hora.
– Não quero voltar pra casa - falou a mulher.
Ele a olhou curioso, nada indicava nele intenção de conquista, nenhum sorriso maroto, apenas olhar benigno:
– Vou ver um show, quer ir?
– Que show?
– Um que nunca viu, quer?
– Como é pessoal?- resmungou o barman
A mulher parecia pensar...não volto pra casa nem morta..
– Vamos! – falou ela depois de jogar em cima do bar uma nota.
Entraram no Voyage gasto e sujo, as luzes do bar se apagaram, o carro arrancou suave, seguiram pela avenida principal até a saída da cidade, seguiram por estrada de terra, o farol do carro iluminou a poeira, ela fechou a janela.
– Tem filhos?
– Não!
– Por que?
– Não sei...talvez por causa dele, não consegue...não me procura...
– Queria?
Ela olhou pela janela do seu lado, a poeira impediu ver com clareza onde estava, tinha certeza que estavam indo por uma estrada sem movimento, nenhumas luzes no sentido contrário, adivinhou campo de pasto esturricado, não chovia fazia tempo, nenhuma sombra de arvores atrás da poeira, a incógnita do destino, estar num carro mambembe dirigido por um estranho a excitava, gostou da sensação, sentiu euforia...
– Sim, queria filhos! que aconteceu com sua mulher?
– Meu nome...Nicolau, o seu?
– Virginia!
– Muito prazer Virginia.
Nicolau, ela gostou do nome, lembrou – se de sua avó nascida na Polônia, o Natal festejado na data de São Nicolau...
– Ele tem amante?
– Sim...não tenho certeza.
– Não liga?
– Somos casados há vinte anos, namorados desde o colégio, é bom homem, trabalha muito, não me falta nada...sai todas as noites, não diz pra onde vai...
A euforia desapareceu como veio, de repente, a poeira lá fora manto assustador, sentiu calafrios, queria não estar mais aqui, se deu conta que estava indo Deus sabe pra onde e talvez sem volta, controlou o início de pânico em sua mente...essa noite é demente, sou um nada, nada me leva a mais nada, nem à esperança, nem ao desespero, tudo é tão simples, as luzes dos faróis, a poeira, o cheiro do corpo dele, por que não acolho meu desejo e me abraço nele? por que deixo para outras horas a esperança de viver e sigo com o desgosto? passou a mão pelo ventre, desejava tanto sentir...
– Chegamos! – falou Nicolau
– Aqui? não tem nada, só pasto
– Desce!
Virginia obedeceu e juntou – se a ele, ao longe clarões iluminando as nuvens, queria que o gênio aparecesse numa nuvem de poeira e uma grande coluna rodopiante no meio da poeira e voar com ela até pais das mil e uma noites...novo relâmpago no horizonte assustou.
– Vai chover?
Ele não respondeu, olhava em direção aos clarões.
– É esse o show – falou Nicolau – ela vinha sempre aqui, gostava dos trovões e dos raios, esperava a chuva...me pedia sempre para acompanha – la, nunca vim com ela...
– Onde ela está?
– Morta, morreu há seis meses...era religiosa, estava doente, pediu pelo padre, fui busca – lo, quando voltei estava...
Os clarões se aproximavam, começou bater vento, trovões e raios mais intensos, a tempestade mais perto...ela se aproximou do Nicolau, passou a mão pelas lágrimas no seu rosto, o abraçou, o vento violento quase os desequilibrou, um raio caiu perto, pingos de chuva nos rostos , ele a beijou, cheiro da terra molhada, não era amor, emoção de sentir os lábios de um homem, gosto do tabaco no bigode, o sexo endurecido através do vestido, a chuva caiu com muita violência, eles continuaram os beijos sofridos, o que a retinha aí era a absurda simplicidade de pertencer à natureza em fúria...ela deitou – se no chão molhado, nada importava, relâmpagos, trovoadas, chuva, água, lama...olho pela última vez no passado,o que chega a mim é esperança serena e primitiva, mas preciso de minha lucidez, olhar o destino nos olhos, meu coração parte ao encontro de si mesmo, céu, derrame a plenitude ao encontro do meu desejo, a eternidade está aqui,eu esperei tanto por ela...gemido prolongado, muitos gemidos e algumas risadas...

O carro estacionou no posto de gasolina:
– Enche o tanque, por favor.
– Sabe para onde vai?
– Não, ainda não – respondeu Virginia.
– E ele?
– Admitiu ter outra, me deu a liberdade.
– Vai ter a criança?
– Sim, comprei até as roupinhas.
Nicolau sorriu:
– Boa viagem!

Iosif Landau




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quarta-feira, fevereiro 20, 2002

É engraçado como determinados tipos físicos nos atraem. Sem nenhum desejo de tesão ou volúpia. Vejo meus desejos completamente diferente dos masculinos. Não tenho pau e ele também não fica duro. Gosto do que aos meus olhos é prazeroso. E nesse contexto está embutido todas as formas, nas mais diferentes manifestações.
Eu vou explicar o motivo das divagações. Eu fui no site Paparazzo e lá encontrei um ensaio de Caetano, o primeiro eliminado do Big Brother Brasil. E ao me deparar com aqueles cabelos loiros, que me lembram uma juba de leão, os olhos verdes, e o corpo musculoso mas sem exageros, acabei não resistindo. Nada nele é exagerado, tudo perfeitamente no lugar. Impossível não colocá-lo no meu papel de parede. Catei uma única foto e ele está assim: de braços cruzados, sem camisa, uma calça branca com cordão de amarrar, o perfil de deus, e os cabelos em desalinho. O nariz aquilino e os olhos miudinhos, lembram uma águia, um gavião ou mesmo um falcão. A foto tem movimento, ao fundo um filtro amarelo dá o tom de fim de tarde, quando o sol parece manhoso e pronto para partir.
Ele está aqui, mirando o horizonte, com aquele ar selvagem, a exibir-se pra mim, da maneira mais natural que pude captar. Uma escultura de formas perfeitas no frio cibernético.

"Digo não ao discurso, à medalha, à fanfarra e aos tambores, à sessão solene, ao incenso, à fotografia de fardão ou em mangas de camisa exibindo as pelancas e a dentadura, não só andor de procissão.
Dá-me tua mão de conivência, vamos viver o tempo que nos resta, tão curta a vida! Na medida do nosso desejo, no ritmo do nosso gosto simples, longe das galas, em liberdade e alegria, não somos pavões de opulência nem gênios de ocasião, feitos nas coxas das apologias, somos apenas tu e eu.
Sento-me contigo no banco de azulejos à sombra da mangueira, esperando a noite chegar para cobrir de estrelas teus cabelos, Zélia de Euá envolta em lua: dá-me tua mão, sorri teu sorriso, me rejubilo no teu beijo, laurel e recompensa.
Aqui, nesse recanto do jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora, eis meu testamento.
Nasci empelicado, de bunda para a lua, uma estrela no peito, a sorte me acompanha, tenho o corpo fechado à inveja, a intriga não amarra meus pés, sou imune ao mau-olhado.
A vida me deu mais do que pedi, mereci e desejei.
Vivi ardentemente cada dia, cada hora, cada instante, fiz coisas que Deus duvida, conivente com o Diabo, compadre de Exu nas encruzilhas dos ebós.
Briguei pela boa causa, a do homem e da grandeza, a do pão e a da liberdade, bati-me contra os preconceitos, ousei as práticas condenadas, percorri os caminhos proibidos, fui o oposto, o vice-versa, o não, me consumi, chorei e ri, sofri, amei , me diverti.
Fujo dos festejos, ao fogo de artifício, ao banquete, fujo ao necrológio, estou vivo e inteiro. Amanhã, passado o obituário de reverências, voltarei ao romance, Bóris, o Vermelho me espera na esquina da máquina de escrever com seu desafio de trapaça e juventude.
Obstinado, vou prosseguir com orgulho e humildade a tarefa de emprenhar nos esconsos da cidade, conceber e parir homens e mulheres, capitães de areia, mestres de saveiro, jagunços, vagabundos, putas, são a inocência e a fantasia, nascem de minhas entranhas fecundadas pelo povo, do coração, dos miolos e das tripas, dos culhões.
Não vou repousar em paz, não me despeço, digo até logo, minha gente, ainda não chegou a hora de jazer sob as flores e discurso.
Saio porta afora para o bulício da rua, Bóris, o Vermelho vem comigo, obrigado por tudo, agradeço e vou adiante, vou me divertir, axé".

Jorge Amado

segunda-feira, fevereiro 18, 2002

Ele me chupava, mas isso não tem mais nenhuma importância.
Ele passa por mim agora, mas aquilo não tem mais nenhum significado, eu sei.
Teve algum dia, algum significado, a língua dele passeando pelo meu corpo, além daquele que eu poderia Ter visto com os olhos, se estivesse de olhos abertos?
"Ele me chupava", me digo, enquanto o vejo passando ao longe, passando ao longe com aquela língua que me chupava e quase não acredito que ele, que ele me chupava e por isso repito que sim, que sim: "Juro que ele me chupava!"
Gostaria que ele não tivesse mais aquela língua.
Não que o quisesse mutilado, sem língua, mas que tivesse outra, outra que não fosse aquela: aquela que me chupava.
Aquela que via, fantasmática língua, possuída por não sei que febre em minhas noites claras, passeando pelo meu corpo insone quando há muito, ele, o dono da língua, já se fora.
Gostaria que ele não tivesse mais aquela língua.
Não que ela fosse extinta quando extinto foi seu desejo por mim, mas que ela fosse extinta ao surgir-lhe o inevitável desejo de passeá-la de por outros corpos.
Não que sinta ciúmes daquela língua que me chupava.
Não se trata disso, penso, e logo me corrijo: "Se trata disso!"
A língua não poderia passear pelos corpos de outras como passeou pelo meu!
Ter passeado pelo meu corpo, hoje, para aquela língua, não tem nenhum significado, eu sei.
Quem pode garantir, então, que naquela época o teve?
Naquela época, não me perguntava do significado daquela língua sobre meu corpo.
Não precisava. Estava tudo no seu devido lugar, tudo como devia ser.
Aquela língua sobre meu corpo era o que devia ser.
O meu corpo era o lugar daquela língua, sua boca.
O meu corpo pertencia àquela língua, aquela língua pertencia ao meu corpo: ou não?
Nunca vou saber a verdade daquela língua sobre meu corpo.
Para sempre não saberei: nunca e sempre, penso, na mesma medida.
Em nenhum tempo eu saberei e em todo o tempo eu não saberei.
Sem possibilidade de intermédio: ou não?
E se eu o parasse, enquanto ele passa ao longe, e perguntasse o significado daquela língua sobre meu corpo?
Essa língua diria que me preocupo demais com os significados das coisas, que me preocupo demais em dar sentido a fatos, meros fatos.
Isso que diria aquela mesma língua que me chupava: "Meros fatos", diria a língua.
A mesma língua diria "meros fatos" como se fosse outra, sem ser outra, mas a mesma língua.
E eu saberia que essa língua não era outra senão aquela, mas mesmo assim pensaria: "Será outra essa que me fala?"
Essa língua que não guardou o gosto do meu corpo, que misturou o gosto do meu corpo com os gostos de outros corpos, não poderia ser aquela: ou não?
Mas, talvez, todos os corpos tenham o mesmo gosto.
Identicamente o mesmo gosto, penso.
"Ele me chupava", ainda me digo, enquanto o observo parado ao longe.
Não faz tanto tempo: "Na verdade, não faz tanto tempo", também me digo.
A língua dele enfiada entre as minhas pernas, afiada língua, eu gostava!
A língua dele enroscada na minha língua, despudorada língua, eu gostava!
A língua dele no meu seio feito língua de filho, incestuosa língua, eu gostava!
E se eu fosse até ele, enquanto está parado ao longe, perguntasse a verdade daquela língua?
Mas me pergunto: para que saber a verdade daquela língua?
E me pergunto, ainda, se poderia suportá-la.
Não a língua, a verdade.
Pergunto e não me respondo.
O corpo é só um vestido, penso: "E agora, esse vestido veste uma outra alma".
Nada mais resta!
O conto verdadeiro trazido àquela alma antiga, eu me envergonho!
As palavras indecorosas sussurradas àquela alma antiga, eu me envergonho!
A nudez absoluta ofertada àquela alma antiga, eu me envergonho!
O conto, as palavras, a nudez, envergonha-me a alma nova sabê-los.
Olho de longe o rosto dele e adivinho a língua que passeava pelo meu corpo.
"Ele me chupava!".

Mira Kolsevic
Éris é aquela que cria o portal para o mundo do Caos. Para penetrarmos no Caos, temos de nos
desagregar, a medida em que seguimos os rastros das serpentes primordiais.

Éris é uma deusa complexa, conhecida pelos romanos como a Discórdia.
Na tradição mais corrente, é uma das divindades primordiais, filha de
Nyx, ou Nox, ou Noite. Mãe de numerosos seres malfazejos como a
Cobiça, o Tormento, a Negligência. Em outras versões é mencionada como
filha ou irmã de Ares/Marte, deus da guerra. Acompanhava-o aos campos
de batalha, suscitando ódio entre os combatentes. Isso, fora o
episódio do pomo dourado (ou Pomo da Discórdia) em que provoca a
Guerra de Tróia.

Não temamos a Discórdia. Ela movimenta o mundo. Desfaz associações,
amizades, casamentos, promessas, vínculos, pactos, causa a guerra, o
terror, a destruição. Isso em nome de uma nova situação, de um novo
tempo, de novas associações. Éris destrói as máscaras da persona,
forçando a mostrar o que é verdadeiro. Assim, Éris é coadjuvante a
Maat, neter egipcio da Verdade e da Justiça. Pois mostra a verdade, o
que está por trás das tensões que se escondem e enganam.

Éris abre as cortinas do palco, para a peça que estava ensaiada, há
muito, muito tempo. Tudo o que a Discórdia provoca já estava quase que
tramada. Ela é como um estopim.

Para exemplificar, digamos que se a discordia aparece em uma
comunidade, ela acaba expondo tudo que existe lá, tudo que estava
retesado. Então uma pequena faísca coloca fogo em tudo. Mas tudo
estava já pronto para pegar fogo.

Sim, se falamos de Discórdia pura. Mas Éris está no limiar do Abismo,
onde os seres primordiais, as Serpentes que emergem do Abismo, como
Seth, o deus vermelho do deserto. Seth é a Serpente primordial, o
primeiro a emergir do Oceano do Caos.

Lá nesse Oceano moram os seres do Necronomicon. Éris forma o portal da
realidade com a não realidade, por ela temos de passar para chegar lá.
Mas antes enfrentamos seres ctônicos como Alécto, Tisifone e Megera,
as Erínias ou Fúrias, seres da punição. Seres infernais, identificadas
com Nêmesis, a Justiça e com o Destino, as Parcas e a deusa Aracne, a
que tece.

Nas profundesas da Hidra, vemos Éris a nos acompanhar. Para acessá-la,
temos de ter um bom acesso ao mais profundo da sombra. Ou, claro,
disfunções na personalidade que nos abrem uma fresta para encontrar
essa complexa deusa.

Éris é uma fiel companheira. Muitos magistas procuram sempre baní-la,
afastá-la. Mas como no caso do banquete em que envia o pomo de ouro,
afastá-la pode ser fatal. O medo da Discórdia é o medo da mudança, da
nova estrutura. Para tanto, aceitar a Discórdia é a forma de não ser
sua vítima. Isso não quer dizer que devamos provocar a Discórdia. A
Discórdia tem seus meios e é ciumenta... Digamos que só Éris tem esse
direito. Deixemos para ela, afinal...

Não posso me esquecer, claro, dos prediletos de Éris, seres onde
impera a Discórdia interior, ou seres que pairam ao Abismo. Esses
seres/pessoas são auxiliados por Éris que é o portal para o outro
lado. Ela os protege e os mima. É uma mãe carinhosa, que toma seus
diletos aos braços e age como grande conselheira. Sua sabedoria é
inimaginável. Assim como suas emanações amorosas.

Costuma se apresentar ao magista como uma mulher de pele extremamente
alva, cabelos vermelhos, dentes de serpente e um pomo dourado que nos
oferece, com seus olhos de gato, nos observando no fundo da alma.



Marcelo Brasil

sábado, fevereiro 16, 2002

No paganismo temos projeções do conceito das Duas Serpentes, expressas
na dicotonia Deusa-Deus. No fundo, isso é um simbolismo para expressar
o casamento divino, que existe em Yesod, ou Hierogamos. O Hierogamos é
o primeiro encontro das duas serpentes.

Quem viu o fatídico filme "As jovens bruxas", ficou se perguntando
quem era aquele "Manon" que aparece no filme. Pois bem, como pode
haver uma bruxaria sem Deusa e com o tal de Manon ? Seria ele o Deus ?

Manon corresponde na mitologia egipcia a Atum, ou a Ouroboros, ou a
Damballah, ou a Olorum, ou a Shiva e etc. Quem são esses ? São o ser
primordial, a primeira manifestação dentro do oceano de Caos
primordial, que chamamos técnicamente de Typhon, ou Tiamat. Essa
serpente/dragão nasce das profundesas e cria o mundo, ou melhor, o
mundo é seu corpo. Daí emerge Seth, o deus ligado ao Caos, ou se
preferir, a primeira consciencia. Esse ser é Manon. Ele é a unidade,
ou se preferir, o Jehová judaico.

Bem, o Jehová judaico é a junção de uma série de deuses hebraicos que
se condensaram depois. A Cabalá, sabedora disso, vai trabalhar com
cada um desses deuses judaicos separadamente. Mas esse é outro papo.
Digamos que o oceano de Caos primordial se condensou em IHVH, ou
Jehová, que é uma pronuncia porca do sagrado Tetragamaton. Então, quem
já lêu o Gênesis sabe que IHVH que era um ser sem sexo criou o par
primordial de deuses chamados Adão e o feminino, expresso em duas
faces: Lilith e Eva.

O mesmo se daria no paganismo. O ser primordial, que está além da
compreensão e contato humano cria dois deuses, um de cada sexo. Esse
ser primordial podemos considerar como sendo a Monada. Com a criação
dos dois seres, temos a Díada. Muito além de se dizer que a Díada é a
criação do homem e da mulher, pois isso é simplesmente burrice, a
díada são os dois polos opostos que existem dentro de nós, que Jung
conceituou bem.

Segundo a tradição da Cabalá, quando IHVH, ou mais corretamente, o
Kadosh Baruk Hur criou o universo, ocorreu o nascimento dos polos
opostos. Se existe algo mais que o Criador (sem sexo, ou polaridade),
existem 2 coisas. Assim o Todo não é Uno, uma vez que existe o Uno e
o Universo. Dois feixes de manifestação são criados sempre, para
qualquer coisa que seja. Isso foi muito bem decodificado pela tradição
hermética, e pode ser apreciado num excelente e mal traduzido (para o
português) livro chamado "O Caibalion". O universo é polar e essas
polaridades interagem com tudo que existe.

Bem, além do Uno, tudo é polar, também somos polares. Em algum lugar
do universo existe o nosso oposto. Se existe o nosso oposto, existe
esse nosso gêmeo, que na antiguidade foi muito bem cultuado. O culto
aos gêmeos, no caso Castor e Pólux, expressos no signo zodiacal de
Gêmeos, em Horus/Seth, os Gêmeos, em Cronos/Zeus, em Zeus/Dionisio, em
Shiva/Vishnu, e em diversas outras formas de manifestação do duplo,
quase sempre em estado de guerra.

Veja, meu outro eu, ou meu duplo, pode estar em guerra comigo, como é
o caso da Sombra. Se tenho um duplo, um dicotônico, para voltar ao
Uno, tenho de destruí-lo, através da absorção. Quem estuda magia
medieval, ou a famosa Goetia, sabe que o nome de 72 letras de IHVH se
divide em dois feixes, um de luz e outro de sombra, os Anjos e os
Demônios. Cada um é o oposto complementar do outro. Se chamamos um
anjo, chamamos ao mesmo tempo o demônio associado. E vice-versa.

O meu duplo não é necessariamente uma mulher,nem está nesse plano de
existencia. Aliás, dificilmente está. Hoje sabemos que existe o mundo
de anti-matéria. Matéria quando em contato com anti-matéria tem suas
massas reduzidas a energia. Ambas voltam ao estado primordial do
oceano de Caos. No dia em que alguém encontrar-se com sua "alma
gêmea", ou duplo, se encontra com o uno, ou seja, volta ao oceano
primordial, perdendo sua individualidade da forma como a conhecemos.
Isso é nirvana, se preferir.

Existem aqueles que dizem que o duplo está do outro lado do espelho. O
que é perfeito, pois o reflexo é o oposto simétrico exato de nós.
Existe uma técnica de contato com o Anjo Guardião em que se usa o
espelho e o anjo "passa" para o nosso nível de realidade.

Mas no fundo, vou falar de forma mais simples, o duplo está manifesto
na coniunctio entre o Sol Negro e a Lua Negra, o filho que nasce dos
dois é o nosso duplo, e esse se une com o Deus e a Deusa, ou casal
Sol/Lua, vivos em Yesod, o local ligado a nosso chakra Hara. A
elevação da Kundalini desperta essa força.

Marcelo Brasil


sexta-feira, fevereiro 15, 2002

Para o cérebro, toda recompensa é bem-vinda, venha ela de uma droga ilícita ou de experiência vivida. Sempre que os neurônios dos centros encarregados de reconhecer recompensa são estimulados repetidamente por substâncias químicas ou vivências que confiram sensação de prazer, existe risco de um cérebro vulnerável ficar dependente delas e desenvolver uma compulsão. Por isso, tanta gente bebe, fuma, cheira cocaína, perde casa em jogo de baralho, come demais, faz sexo sem parar, compra o que não pode pagar e levanta peso compulsivamente nas academias.
A palavra dependência vem sempre associada às drogas químicas, ao desespero do dependente para consegui-las, ao aumento da tolerância às doses crescentes e à crise de abstinência provocada pela ausência delas na circulação. Toda vez que o cérebro é submetido a estímulos repetitivos carregados de conteúdo emocional, os circuitos de neurônios envolvidos em sua condução se modificam para tentar perpetuar a sensação de prazer obtida.
Esse mecanismo, conhecido como neuroadaptação, é arcaico. Em artigo publicado na revista “Science”, um grupo seleto de neurocientistas mostra que, por trás do consumo de drogas, das compulsões alimentares, sexuais ou de fazer compras, da cleptomania e do vício do jogo ou de fazer exercícios exageradamente, existe um mecanismo comum de neuroadaptação.

Drauzio Varella

quinta-feira, fevereiro 14, 2002

Abri os olhos e a sensação boa de estar com amigas que não vejo há tempos deixou aquele sorriso espontâneo que surge quando a gente lembra de quem se gosta. Foi um sonho mesclado, cheio de pessoas conhecidas e até o cachorro fila do meu irmão, aquele gigante apareceu abanando o rabo pra mim.
Como sempre eu não sei como tudo começou. Quando consigo lembrar dos sonhos eles sempre parecem fotografias, quadros imortalizados pela mente, flashes pipocando ininterruptamente.
Não sei como fui parar na casa de Letti. Aninhagon estava esparramada num sofá, de vestido branco curto, tipo frente única. O vestido era semelhante ao de Marilyn Monroe em 'O Pecado Mora ao Lado'. Ria pra mim, mas dizia que estava chateada com algo que estava acontecendo na vida dela. Falou sobre distância e abandono e eu não consegui registrar por completo o que não estava bem. Subitamente Letti apareceu. Usava um anel de cobra, tal qual o que estou usando agora, no dedo médio, a cabeça é de abalone e o rabo tem uma curvinha. O dela era de macassita, aquelas pedrinhas todas brilhando sobre o fundo escuro. O desenho das serpentes era idêntico. Eu dei meu anel a Claudia e pedi que o usasse junto com o seu de mesmo desenho. Ela riu e disse que havia gostado, que tinha ficado bonito, apesar dos dois anéis estarem num mesmo dedo.
Acordei e fiquei pensando se havia algum significado especial para o sonho. Sei de todas as representações para a figura da víbora, como sabedoria, o aspecto fálico, traição e todas as interpretações que povoam as crendices populares e os que se dedicam a decifração dos sonhos. Ainda assim, não compreendi o sentido. Talvez eu tenha ficado impressionada com a crônica que ela escreveu sobre o Senhor dos Anéis e isso de alguma forma ficou impresso no inconsciente. Será que entregando meu anel de poder me livraria do 'peso' que pendia sobre meus ombros?

quarta-feira, fevereiro 13, 2002

Uma das imagens que mais me seduz é a figura de Pan. Achei um livro que conta um pouco da saga desse deus, que personifica perfeitamente o deus cornífero, cultuado pela bruxaria moderna. A silhueta meio bode e meio homem, a estatura mediana, e a indefectível flauta mágica, cuja melodia se propaga pela floresta, arrebata as ninfas e as dríades.
Andei pesquisando sobre esse ser mítico e subitamente 'O Deus dos Magos' veio pousar em meu colo. Nessa saga por fatos que elucidassem minha montanha de dúvidas, andei envolvida com Hermes Trimegisto, passando também por Hermes romano, o embusteiro, o grande mensageiro entre homens e deuses. O curioso disso é que a figura com sandálias aladas também tem me perseguido através do texto que Gustavo vem desenvolvendo. Nossas mentes focadas em objetos diferentes mas que no fim unem-se num mesmo propósito. Deixo com vocês uma invocação a esse deus que representa Tudo:

"Grande Pan, senhor do paraíso arcadiano, inspira o nosso coração com a tua presença. Deslumbra a nossa mente com as tuas notas deliciosas. Responde aos nossos desejos com a tua magia perfeita. Faze com que os bosques e campos, montanhas e vales encontrem proteção nas tuas pegadas. Faze com que a lebre e o cervo, a lontra e o texugo, a raposa e seus filhotes, todas as famílias dos nossos irmãos e irmãs da floresta enocntrem conforto no teu toque. Faze com que as aves do ar e os morcegos da noite dancem livremente ao som da tua flauta e os peixes dos rios e dos grandes mares encontrem paz no eco do teu chamado. Faze com que as coisas pequenas se aconcheguem com segurança nas tuas pernas fortes, protegidas pelo Deus de pés de cabra".



terça-feira, fevereiro 12, 2002

Sim, eu já cheguei. Mas, ainda estou naquela letargia pós viagem, colocando as coisas em ordem, tentando voltar à normalidade cotidiana. Li que a Ana esteve no Rio, que pena....não sei se ainda vou conseguir pegá-la por aqui...
Falo com Eliane, amiga preciosa. Tricotamos, fazemos planos para nos encontrar. Tem mais de um ano que não nos vemos...e parece que foi ontem! Tenho sempre essa idéia de que 'foi ontem' e não foi. Perco muitas vezes a noção de tempo e espaço, a cronologia humana e fico com a sensação de que estou mais perto do que realmente estou.
Mil emails lotam a caixam postal, uns pedindo confirmação. Estou sem paciência pra ler, ainda voltando num marasmo gostoso, um espírito baiano baixou em mim...
Tiramos várias fotos na fazenda e passamos da câmera pro micro e eu vi que meus cabelos andam castanhos. Engraçado porque as fotos revelam aspectos que normalmente o espelho não mostra. Sempre vejo meu rosto de várias formas, sob outros ângulos, as faces que se transfiguram sobre o cristalino óptico.
Fomos caminhar na praia, um calorão de quarenta graus. O Rio continua lindo. Melhor fazer exercícios e tendo como pano de fundo a paisagem que não dá chance ao tédio. O vento soprava forte, o que camuflava a força solar. Alguém remava num caiaque, outros se jogavam dentro d'água, uma pescaria coletiva, vários barcos chegando e saindo. A vida correndo por fora, uma moldura efêmera pro mar.

quarta-feira, fevereiro 06, 2002

Deixo aqui meus desejos de um ótimo Carnaval. Pra aqueles que não passam sem o batecumbum e pros que curtem a possibilidade de viagem no feriado prolongado. Vou hoje cedo e volto segunda. Sentirei falta de vocês e como diz a Ana, no seu Udigrudi, desse 'mascote' amigo, o animal de estimação virtual.
Então até a volta e divirtam-se sob a batuta do momo e da alegria.


Abri os olhos, vi o sol marombeiro lá fora, fui para piscina pegar uma cor, e tirei um pouco do ar amoníaco que tingia todas as partes do corpo. Naturalmente, me enchi de energia do astro-rei, e a motivação, a garra, a determinação e o bom humor preencheram as lacunas da existência. E toda a dor vai embora, tendo em vista a sensação de corpo completo, inteiro. Os chackras agradecem e eu também: é distribuído irmãmente o benéfico amarelo radiante.
Fui colocar um pouco de movimento à estagnação. Foi gostoso. Me acabei de sambar, esqueci o tempo, as coisas, as pessoas que estavam à minha volta. O prazer era meu, solitário, algo que só a gente compreende. Não é a euforia provocada por nada externo. Vem de dentro. Daquela sensação única de estar pulsando. Estou mais viva do que ontem, mais certa daquilo que espero e pretendo esse ano. Também fiz uma lista de objetivos e vou alcançar cada um deles. Afirmo porque sei que vou e tenho tudo para isso. Bom recobrar a confiança, melhor se saber livre, aberta, solta, caminhando sob a pulsação dos 'cavalos selvagens'.
Nada como um dia depois do outro. Amanhã tem mais.

segunda-feira, fevereiro 04, 2002

Tem dias que acordo e uma sensação de vazio se apodera....
É tão natural que não consigo achar forças que vençam a inércia. Há uma preguiça completa que se arrasta nas ações lentas e pouco dirigidas.
Perdi a paciência, briguei pelos direitos que possuo sobre contratos e vencimentos. Devo estar na tpm e felizmente consegui me manter equilibrada enquanto argumentava e defendia meus direitos de consumidora. Depois de colocar o telefone no gancho, de discar todos os 0800 que eram indicados nas boletas, as lágrimas caíram. E sei bem que perco o controle quando estou às vésperas do sangue mensal. E parece que isso acaba sendo estendido a outros setores, promovendo um verdadeiro carnaval em meu íntimo.
Ontem conversamos bastante. Abri meu coração e deixei que o que afligia fosse saindo, despejado, tal qual comporta quando aberta. Batemos em determinados pontos que acabam aborrecendo e cheguei a boas conclusões. Fizemos pactos de paz e entendimento.
Por outro lado, a dúvida quanto aos próximos passos continua insistindo. Pergunto-me os motivos dessa falta de movimento, dessa estagnação que me paralisa. E por mais que eu tente arranjar argumentos reais que expliquem os porquês, nada se encaixa. Fica solto igual às partes de um enorme quebra-cabeça. São as mil peças da vida que não se adaptam, ficam à deriva precisando de orientação, mesmo que seja divina.
Meu irmão liga e me convida pra um ensaio de escola de samba. Eu rio e aceito o convite. Minha cunhada telefona em seguida, toda eufórica, querendo saber se vou mesmo. Ela quer companhia. Então vamos ver o famoso Joãozinho Trinta, ao vivo e em cores. Faço os planos, amanhã ainda tenho aula e quarta preciso entregar papéis no banco, cedo, no centro da cidade. Quinta viajo, vou me desligar de tudo, entrar em contato com aquele verde da fazenda, me refrescar no meio do mato, distante da civilização. Nada de computadores até segunda. Enquanto isso, vale se soltar, deixar os pés pisarem na terra, andar a cavalo, tomar banho de cachoeira, dormir mais cedo e tentar uma pescaria no fim da tarde. Coisas simples, prazeres corriqueiros. Pequenos detalhes que fazem a diferença e dão paz.
Às vezes esqueço o quão feliz sou. É preciso lembrar disso e evitar a melancolia que volta e meia faz morada aqui. É como eu digo, escrever, esse ato catártico, acaba por dissolver algumas impressões ruins que ficam retesadas dentro. Liberando as tensões, volto ao ar, ao vento, ficando leve, mais fluídica e transparente. O melhor mesmo é essa última linha com a sensação plena de demônios exorcizados.

"A tendenciosidade, ou pinturas do coração, é o jogo com a possibilidade, o jogo com a autotentação, do qual bruscamente podem irromper a violência, o mal." Buber

Martin Buber - afirma numa passagem do "Imagens do Bem e do Mal" que o fruto proibido é o fruto do possível, aquele que provado, permite-nos arquitetar, imaginar, possibilitando transformar em realidade os produtos da imaginação, sobrepondo-se a uma realidade primordial, não inventada, essencialmente boa, divina. A expulsão do Éden não teria sido em decorrência da "desobediência em si", mas da posse da imaginação que tornou o homem "como Deus", mas que não pode igual ao Criador, ser superior a ela... Muito pelo contrário, entra e desabrocha nela, na sua capacidade de fantasiar. Tudo o que é imaginado aspira corporificação e é daí que pode ser gerado o Mal.
Lembram-se daquela máxima "pecamos por pensamentos, palavras e obras"? Sempre que ouvia isso, até um passado mais ou menos próximo, eu sempre corria ao banheiro para me lavar com água quente e um bom emoliente (infalivelmente, porém, terminava atraído por friccionar as coxas, mamilos e pintos próximos). A palavra (pensada ou pronunciada) pode ser a bolsa uterina da obra, e nessa qualidade, o sumo venenoso, o bago responsável pela danação. E se a luxúria, a intimidade com o Mal é decorrência da "fertilidade do possível" que podemos converter, a qualquer tempo, em realidade apócrifa, eu me pergunto sobre o que fazer para não me contaminar até o último poro... Não consigo me livrar da idéia de que sou um fruto suspeito de Deus, atestado de uma provável imperfeição, uma obra leviana Dele, e aparentemente não muito diferente das minhas próprias produções adversas... Por outro lado indago se consigo reservar às minhas obras a possibilidade de redenção das suas misérias inerentes? A mim são concedidos, por algum golpe de mestre divino, instantes em que nenhuma fantasia ferve, nenhum pensamento, nenhuma idéia... Os martírios das divagações, dos sonhos, de todas as infinitas dualidades desprendem-se do momento e tudo passa a ser união, contato imediato, fusão, ressurgir de paraíso... São ciclos de exílios e anistias o que vivemos. Por mais que eu sonhe, boline tantas tentações, não estou condenado ao degredo irredutível.
O reino ou os reinos do céus são estações, portos mais ou menos periódicos que os meus pares proporcionam. E os meus pares são homens, cachorros, rochas, amigos, amantes, violetas, carvalhos, montanhas, perfumes. A minha desdita: desejá-los. A minha morte: possuí-los. Ideal seria flertar despojado, cortejar como quem acrescenta cores e novas formas a uma tela, beijar, gozar, sumir, reaparecer como uma Senhora de Lourdes, de Fátima à pastorzinhos, ou Dom Sebastião, emergindo do fundo do oceano. E agora estou transgredindo porque invento compulsivamente e atribuo corpo de texto ao martírio, sem possibilitar ao que está escrito se desfazer em núpcias. A premeditar, melhor seria recordar... Não interpretar sonho nenhum, apenas ouvi-lo, simplesmente, como voz de um antigo e respeitável bisavô...
Sonhei, ontem, que participava de uma novela, e um homem reclamava, criticava minha atuação. Achava-a pouco definida, apagada, inconsistente... Ele estava na platéia, percebia apenas a representação, a mímica pobre... O que se passava comigo não se podia traduzir em script, nem sequer em linguagem para surdos-mudos, mas como era sonho - tendencioso de possibilidades -, converti em imagem a efervescência interna... De imediato surgia um carro alegórico imenso, negro e verde, repleto de dragões chineses enroscando-se em hermafroditas (entre eles, eu) de peles transparentes. O que era aquilo? Uma metáfora do inferno, com o que eu o presenteava, para "compensá-lo" por não haver sido convincente o suficiente para atrair sua atenção... Um souvenir espalhafatoso do Mal, uma criação perversa erigida sobre o meu simples, muito fundo querer bem a esse amigo. E aí, nesse instante, da platéia, ele reagia positivamente, entusiasmado com a devassidão dos meus trejeitos. No dia a dia eu tenho necessitado da efusão diabólica do verbo e do gesto para me fazer "outro" a alguém e viver o diálogo mudo de uma salvação temporária.
Custa-me o delito de Adão e Eva... A partir dele as fusões místicas, senhas para um eterno retorno, só me são possíveis mediante grande quantidade de adereços: das próteses de tudo até os murmúrios nas crateras dos ouvidos...
É como se Lúcifer nunca desistisse de querer me vender a sua alma em prestações intermináveis.
Se o desejo é, por prevenção, recriminável, no mínimo desnecessário, uma vez que a plenitude não é inventada, e repousa sob todos nós, existindo no formato de eterno Bem divino, que eu me contente com a poesia temporariamente amarga dos olhares que não estarão voltados para minha cara lavada.

Antonio Mattos

domingo, fevereiro 03, 2002

Cada uma de nós conta histórias - as suas ou as que inventa, ouve, capta, interpreta, vê.
O cotidiano desfila alinhavando desejos, sonhos, dores, lágrimas, sorrisos, esperanças, medos, descobertas...
Um enorme quebra-cabeça que montamos com nossa aguçada intuição, entrelaçando palavras, desenhando destinos, nossas paixões olhando além: com simplicidade, desafio, aceitação ou arrogância.
Na minha concepção, tudo o que escrevo soa comum.
Na constância do tempo, horas que se somam desencadeando dias, semanas, meses, anos, séculos sem fim na eternidade, sei que minhas histórias já foram vividas, minhas alegrias e desilusões já sentidas, o amontoado de sentimentos e desejos que me possuem já pertenceram a outras eras...
Outra mulher chorou minhas lágrimas e amargou as mesmas perdas...
Riu meu sorriso e foi parte da felicidade de abraçar o homem amado...
Outra mulher também o viu partir, com o desespero do desencanto, e o viu voltar, com a calma agitada dos que se sentem derrotados numa disputa que julgava perdida: perder batalhas para vencer a guerra...
Todas as minhas saudades moram em algum canto no horizonte, minha fragilidade e força pertencem ao mundo...
Os pesadelos da noite, a incompreensão diante da morte, minhas sombras, a inquietação: outra mulher conhece delas também...
Muitas de nós guardam dentro de si silenciosas histórias, numa confraria pessoal de textos secretos, postos lado a lado nas prateleiras do coração.
Algumas conservam no sótão particular um sem número de palavras que não foram ditas, percepções caladas, perigosos atalhos que, de repente, vêm à tona estraçalhando tudo ao redor. Não é bom ter um 'baú de ossos' trancado na memória, mas nem sempre é fácil livrar-se desse pesado abstrato, que vez ou outra abre-se e se lança sobre nós, semeando uma melancolia que a gente diz não saber de onde vem... Mentira: vem do perdão que negamos, daquela mágoa que ainda remoemos, daquele momento ruim que não relevamos e nos abriu um abismo por dentro - buraco insondável que alimentamos com nosso rancor...
Minhas histórias são um reflexo do que sei, aprendi, vivi, detalhes que ardem na minha pele, bagunçam minha mente, confundem-me.
Em outros tempos escrevi intensamente: mais do que uma arte, era um vício, minha maneira de gritar ao mundo meu desapontamento com a vida. É curioso como quando a gente está dentro de rodamoinhos dolorosos, consegue definir com precisão marcante o revés e seus desdobramentos. Talvez a gente se centre demais nos
aborrecimentos, mantendo por longas temporadas sofrimentos desnecessários que podíamos amenizar... É humano...
Mas quando está feliz, uma calmaria arromba as portas de nossa alma e a quietude se infiltra, nos torna tão mansamente tranquilas, que a gente se enrosca numa sutil ausência da necessidade de dizer muita coisa e vai estendendo o presente até o futuro, ansiando o 'para sempre'... Paz é o nome...
Sinto-me assim nesse momento... Tranquei, temporariamente, minha contadora de histórias. Ela descansa agora, sentada no chão do meu antigo quarto escuro - que anda iluminado e aconchegante. Marota, ela sorri do meu eventual silêncio e é cúmplice quando me percebe dedilhando sobre a brevidade de alguns momentos especiais, que ando insistindo em saborear e reservar a quatro mãos...
Nada diverso: é tudo parte de todas as mulheres que me habitam...

Debora Bottcher

sexta-feira, fevereiro 01, 2002

No meu papel cerebral um barquinho é tal qual folha seca no meio do mar que se agiganta em proporções generosas... apesar da imensidão, há uma paz marítima, daquelas que o sol recorta com seus raios mais doces, mansos, no fim da tarde. Quando o crepúsculo é inevitável. Une-se a terra, funde-se, mescla-se como num conto. Os mundos se encontram, o sol e a lua, a noite e o dia, o pálido e o arco-íris.

Escuto Caetano ao fundo, lembro da primeira vez que ouvi essa música. Eu tinha 17 anos. Alguém dizia que eu era linda, eu era uma menina. Pura, completamente indefesa e destemida. Aquele impulso raro, que parece ter a vida contida num sorriso, nos olhos claros que brilham sem parar... 'A onda do mar, do amor, que bateu em mim'.

Quando estive no Abaeté numa noite de brisa suave, que arrepiava descaradamente o corpo, pude entender o que dizia ele, o poeta. As estrelas, a areia, o cheiro do lugar. Jamais poderia reproduzir a sensação. É preciso ir lá. E esse toque baiano, esse toque poético, me leva aos mitos afros: A Oxum, a dona das cachoeiras, lagos riachos; a Iara do nosso folclore; a um tempo em que as escravas, lavadeiras, com seus cânticos à beira d’água, rendiam homenagem à rainha de todas as fontes doces do planeta.

Um dia cantei essa música para uma mulher. Ela é linda, rara. Não só pelo jeito doce e selvagem que se mistura na alma, mas, justamente por eu saber o tanto do amor fraterno que sentimos uma pela outra. Alguém nos fitava meio assustada. Uma declaração explicita de amor. Eu sei a resposta para tal coisa: nossas almas são gêmeas. Pulsamos num diapasão parecido. Somos irmãs vindas de outra vida, unidas novamente nessa existência.

Escrevo o que a essência dita: as poucas e especiais pessoas, tempo, paisagens. Muitas vezes vejo-me nesse pequeno barquinho, caminhando pelas águas mansas do planeta. Em outras, encaro as mais terríveis tempestades e nem por isso desejo o fim.

E o que será mesmo o fim? Ou será que voltamos de onde partimos um dia? Sei que sou eterna, imensurável, capaz de sonhos galácticos, astronaves, vôos no horizonte infinito do oceano. Um salto de braços abertos, embalada pelo vento carregado de maresia. Isso lembra uma música do Jota Quest que eu adoro, que tem como título: O Vento. Ela diz assim:

Voe por todo mar e volte aqui/
Voe por todo mar e volte aqui pro meu peito/
Se você for, vou te esperar, o pensamento que só fica em você/
Aquele dia um algo mais, algo que eu não poderia prever/
Você passou perto de mim, sem que eu pudesse entender/
Levou os meus sentidos todos pra você/
Mudou a minha vida e mais/ Pedi ao vento pra trazer você aqui/
Morando nos meus sonhos e na minha memória, pedi ao vento pra trazer você pra mim/
O vento traz você de novo/
O vento faz o meu mundo novo/
E voe por todo mar e volte aqui pro meu peito.

AS ORIGENS DA MAGIA

Alegoricamente, no livro apócrifo de Enoque, está escrito que a Magia foi ensinada pelos anjos que se deixaram cair do céu para amar as filhas dos homens. Segundo Eliphas Levi, os filhos do céu são os Iniciados, os Magos, os sacerdotes antigos, os detentores dos segredos da Alta Ciência.

Os filhos do céu, seduzidos ou embriagados pelas forças magnéticas da natureza, concentradas nas filhas dos homens, acabaram, pela primeira vez, numa época muito distante da atual, trocando seu cetro de poder pelo Osso de Onfale ou seus segredos mais poderosos pelos feitiços, pelas paixões humanas. Vale dizer que a volúpia, a paixão, a força cega (ódica) de Eros destronou os brilhantes filhos dos céus nos primórdios da humanidade terrestre. Tanto Adão quanto os magos foram seduzidos pela mesma serpente que até nossos dias atrai e ilude ricos e pobres, crentes e descrentes, santos e depravados.

Para se chegar à Alta Magia é preciso escalar, cuidadosamente, o tronco da Árvore da Vida e o tronco da Árvore do Bem e do Mal. Moisés, Davi, Salomão, Krishna, Buddha, Pitágoras, Platão, Jesus, Maomé, todos tiraram dessas duas árvores cabalísticas seus poderes e cetros de reis, sacerdotes, magos, profetas ou, simplesmente, grandes seres. Portanto, é a Magia ou Alta Ciência destinada aos homens e mulheres que chegaram ao domínio da vontade, da imaginação e das paixões e fraquezas humanas. Há que se ter sempre em mente que a casta natureza não entrega as chaves da sua câmara nupcial aos adúlteros e fornicários.

Em Magia existem apenas duas categorias de pessoas: senhores e escravos. Todos nascem escravos de suas necessidades. Hoje, mais que no passado, novas necessidades foram e estão sendo inventadas e mantidas por um aparato publicitário, sustentado pela indústria do consumo. É possível a libertação dessas necessidades. Em Magia isso é indispensável porque não há como nivelar senhores e escravos em nome de um falso conceito igualitário e fraternal.

A inteligência deve governar e o instinto obedecer. Está escrito, no gigantesco livro aberto da natureza, que são os homens livres que devem governar e conduzir os escravos. Isso não quer dizer, de forma alguma, que os escravos sempre serão escravos. Ou que os senhores devem fazer e manter sistemas de escravidão como muitos acreditam, fizeram e querem fazer crer. Pelo contrário: os escravos estão sendo chamados, permanentemente, a se libertarem. Contudo, não entendem a liberdade, não querem a liberdade. Sonham com uma liberdade feita à sua imagem e extensão, onde tudo é possível e legítimo, acima e além de todas as leis que criaram e mantêm o universo.

A liberdade, por conseguinte, não consiste em legalizar ou autorizar a prática de vícios, prazeres, paixões ou cultos hedonísticos. Isso seria a pior e a mais perversa de todas as tiranias. A liberdade é um estado de consciência e consiste em obedecer, voluntariamente, à lei. São as paixões e apegos individuais que levam à existência e ao estabelecimento de leis, governos e sistemas conduzidos por homens livres. São os escravos, em última análise, que fazem necessária a existência de senhores — e não o contrário.

Compreende-se aqui por que os poderes da Alta Ciência não podem e nem são entregues aos ambiciosos, gananciosos, cúpidos, intrigantes, caluniadores, etc. A Atlântida afundou porque seus sacerdotes prostituíram a Magia. A atual civilização também já se condenou ao desaparecimento, primeiro porque profanou os Mistérios e, depois, porque deixou de seguir seus preceitos. Não existe retrato mais vivo e candente da inversão de princípios que o da civilização atual. Hoje, são os escravos que governam e fazem as leis. A conseqüência é o caos social, fruto de um perverso desnivelamento de valores, bens e riquezas que Deus e a natureza nos dão.

Nem Deus nem a natureza geram reis e escravos. Todos nascem para trabalhar; todos nascem operários (maçons) da Grande Obra do Creador. Contudo, há operários que se negam a trabalhar. Mesmo assim, o Grande Arquiteto do Universo respeita o livre arbítrio. Mas, para manter a ordem e poder respeitar o livre arbítrio dessas criaturas, que preferem não trabalhar na Grande Obra, são estabelecidas leis e sistemas. Ou seja: a decisão do homem de não colaborar com o Plano Divino levou Deus a estabelecer a Hierarquia.

Deveriam aprender, os governantes e políticos do mundo inteiro, que só dentro da Hierarquia pode haver Liberdade, Igualdade e Fraternidade, hierarquia essa que só pode existir dentro dos valores da Consciência e não do Intelecto ou da Personalidade.

Por tudo isso, por toda a realidade escondida atrás dessas palavras, é que se pode afirmar que, entregar os segredos da Magia ao povo ignorante, é o mesmo que expor a nudez paterna à curiosidade dos estranhos — como relata a Bíblia na passagem referente a Noé. O próprio Mestre Jesus alertava seus discípulos com estas palavras: “Não lanceis vossas palavras aos porcos para que eles não as pisoteiem e, voltando-se contra vós, não vos devorem”.

Zoroastro, Thoth, Hermes e inúmeros outros personagens, que se imortalizaram ao longo dos séculos, necessariamente não tiveram existência real. Em Magia e Kabala, por exemplo, nomes e personagens quase sempre são simbólicos e axiomáticos. Isso não invalida, ao mesmo tempo, a realidade histórica desses mesmos personagens.. Veja-se o caso do Cristo. Existiu e existe o Cristo histórico, o Cristo Cósmico e o Cristo mítico ou simbólico, sem se esquecer, evidentemente, o Cristo Interno e individual de cada um.

Quando se faz estudos comparativos de religiões e teogonias religiosas, percebe-se a constância e a repetição de nomes ou valores. É como se todos os cultos, religiões e ritos fossem — como de fato são — ondas sucessivas oriundas de um mesmo, único e primeiro centro: Deus. Portanto, não há Magia sem Deus.

A palavra Deus, reconhecemos, está desgastada. Mas, não importa. Troquemo-la por expressões como “universo”, “vida”, “natureza”, “G.A.D.U.”, “primum mobile”, “primeiro instante”, etc. etc. Não importam os nomes. Todos são meros conceitos para exprimir uma determinada realidade, a qual, mesmo em laboratório, não pode ser provada. Mas, ao mesmo tempo, é tão demonstrável e tão empírica quanto qualquer outra experimentação ou demonstração científica. A única e irrefutável prova é aquela estabelecida diretamente pela nossa inteligência, ou seja, a comprovação.

O culto ao fogo, criado e estabelecido por Ram ou Rama na Era de Áries, cerca de 4 mil anos atrás, reverenciava o Logos Solar. Esse mesmo culto ao degenerar-se, ao cair, deixou de cultuar e reverenciar o ente divino. Pior que isso: distanciou-se de tal modo de sua origem e finalidade que se transformou em sacrifícios humanos e imolações de crianças e virgens. Onde está o erro: na Magia ou na ignorância?

Numa, o autêntico fundador de Roma, estudou e foi iniciado nos Mistérios da Magia. Dizem antigas tradições que Numa possuía o poder de formar e dirigir o raio. Outros, tentando a mesma proeza, acabaram morrendo, por não saberem como dirigir a descarga elétrica. A própria Arca da Aliança é tida por muitos, até hoje, como um poderoso gerador de eletricidade. Sabe-se, com segurança, que os antigos conheciam a eletricidade, especialmente certos aspectos da eletricidade, que a atual civilização, com sua ciência, ainda não conseguiu descobrir e dominar.

Dentre outros antigos símbolos da Alta Ciência estão o leão e a serpente. A “ciência do fogo” era - e ainda é - o Grande Arcano dos magos. Há muitas ilustrações antigas mostrando homens dominando leões e segurando serpentes. O leão representa sempre o fogo celeste enquanto que as serpentes representam as correntes elétricas e magnéticas da Terra (e do homem).

Toda a Magia Hermética, todo o ocultismo autêntico está assentado no axioma do “governo do fogo”. Não há, nem pode haver, mago verdadeiro que não tenha, antes, se apossado da Tocha dos Deuses. No tempo de Zoroastro, e das grandes cidades de Nínive, Babilônia, Assíria e outras, foram erigidos os maiores monumentos de nossa história. Nessas cidades, o templo e o palácio do rei se sobressaíam das demais construções.

Isso significa que, nos tempos áureos da humanidade, realeza e sacerdócio formam uma dualidade inseparável. A civilização cristã tentou copiar esse modelo, porém, não conhecendo os segredos da Alta Ciência, desprezados pelos primeiros padres da Igreja, enveredou pelos perigosos e traiçoeiros caminhos da ambição e da ostentação material.

Voltando-se ao tempo áureo da Magia, do sacerdócio e da realeza, naquela época, os templos, sob a vontade dos magos-sacerdotes, cobriam-se de nuvens, relâmpagos, luz ou trevas. Relatam antigas tradições que as lâmpadas acendiam-se por si mesmas, os Deuses tornavam-se visíveis e infeliz daquele que atraísse sobre si a maldição dos Iniciados. Hoje, isso só ocorre em alguns templos budistas muito secretos e inacessíveis do Oriente.

O templo protegia o palácio, e os exércitos do rei, combatiam pela religião dos magos. Nessa época o rei era sagrado; de fato, era o governante divino na Terra, de cuja lembrança ancestral ainda hoje encontram-se fragmentos (superstições) em certas monarquias. Vem daí o costume de os súditos se prostrarem à passagem do rei e da rainha...

O poder dos magos era tão grande nesses tempos áureos que todo aquele que intentasse passar os limites do palácio real, sem permissão, caía fulminado. Não pelo gládio ou lança, mas por mãos invisíveis, pelo raio ou pelo fogo do céu. “Que religião! Que poder!”, exclama Eliphas Levi. Que grandes sombras!, exclamamos nós. Nemrod! Semíramis! Quem nunca ouviu estes nomes? Não há dúvida: há muitos mistérios enterrados nos túmulos das nações...

Em Aquário voltaremos a viver, novamente, esses tempos gloriosos. As religiões de hoje cederão lugar, gradativamente, para uma espiritualidade universal. Os magos aquarianos conquistarão, mais uma vez, suas espadas e seus cetros de poder, para voltar a governar o mundo com justiça, poder e sabedoria. Evidente que isso só será realidade lá pelo ano 2.500... — após a Grande Catástrofe.

Magia é uma ciência da qual ninguém pode abusar sem perdê-la e sem perder-se. Os soberanos e sacerdotes do mundo antigo eram grandes demais para não se arruinarem caso viessem a cair. Acabaram tomados de soberba, tornaram-se orgulhosos e caíram. Recorde-se aqui a lenda da Torre de Babel. Nessa época, os homens (magos) orgulhosos de sua força e sabedoria, decidiram construir uma torre que ligasse a terra ao céu; foram fulminados porque a criatura jamais se igualará ao Creador...

A grande época mágica da Caldéia é anterior ao reino de Semíramis. No tempo de Semíramis a religião já estava decaindo, transformando-se em idolatria. O culto a Astartéia substituía o da Vênus celeste e a realeza começava a se fazer adorar sob diferentes nomes. Semíramis coloca, então, a religião a serviço da política e das campanhas militares; substitui os velhos templos por grandiosos monumentos. Dessa forma o sacerdócio se fazia cada vez menor que o império. À medida que o império ruía, esmagava o sacerdócio, e desse tempo até nossos dias, fomos mergulhando mais e mais na Idade de Ferro. Agora, nesta década de 90, continuamos amargando as conseqüências de antigas decisões...

Percebe-se, então, que o poder oferecido, ou escondido na Magia, vai muito além do que supõem as pessoas. Não se trata de simples realização de rituais, energias, seres, deuses, devas ou invocações e usos de símbolos e perfumes. É tudo isso ao mesmo tempo e muito mais, operados e conduzidos pela vontade, imaginação, sabedoria e soberania do Mago.

Aqueles que aspiram a Alta Ciência têm em Zoroastro as seguintes orientações:

É preciso estudar e conhecer as leis misteriosas do equilíbrio que submete ao império do bem até as potências do mal.

É preciso purificar o corpo e a alma pelas provações, lutas e vencer os fantasmas da alucinação e do medo.

— É preciso ter vencido os vícios, paixões e limitações pessoais.

Quando caiu Babilônia terminou o tempo da Magia pura, da Magia em si mesma, e tinha início a época cabalística. Abraão, saindo da Caldéia, levou consigo os Mistérios da Magia, dando início, assim, à segunda ciência, à segunda face da Magia: a Kabala.
autor desconhecido