quinta-feira, fevereiro 28, 2002

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o nosso tempo de ventura.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e a alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires, que antes se desgarrava em arrabaldes para a planície incessante, voltou a ser a Recoleta, o Retiro, as apagadas ruas do Once e as precárias casas velhas que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas; Demócrito de Abdera arrancou-se os olhos para pensar; o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói; flui por um manso declive e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto, as mulheres são o que foram faz já tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isto deveria atemorizar-me, mas é uma doçura, um regresso.
Das gerações dos textos que há na terra só terei lido uns poucos, os que continuo lendo na memória, lendo e transformando.
Do Sul, do Este, do Oeste, do Norte, convergem os caminhos que me trouxeram a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos, mulheres, homens, agonias, ressurreições, dias e noites, entressonhos e sonhos, cada infimo instante do ontem e dos ontens do mundo, a firme espada do dinamarquês e a lua do persa, os atos dos mortos, o compartilhado amor, as palavras, Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las.
Chego a meu centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

Jorge Luis Borges