segunda-feira, fevereiro 18, 2002

Ele me chupava, mas isso não tem mais nenhuma importância.
Ele passa por mim agora, mas aquilo não tem mais nenhum significado, eu sei.
Teve algum dia, algum significado, a língua dele passeando pelo meu corpo, além daquele que eu poderia Ter visto com os olhos, se estivesse de olhos abertos?
"Ele me chupava", me digo, enquanto o vejo passando ao longe, passando ao longe com aquela língua que me chupava e quase não acredito que ele, que ele me chupava e por isso repito que sim, que sim: "Juro que ele me chupava!"
Gostaria que ele não tivesse mais aquela língua.
Não que o quisesse mutilado, sem língua, mas que tivesse outra, outra que não fosse aquela: aquela que me chupava.
Aquela que via, fantasmática língua, possuída por não sei que febre em minhas noites claras, passeando pelo meu corpo insone quando há muito, ele, o dono da língua, já se fora.
Gostaria que ele não tivesse mais aquela língua.
Não que ela fosse extinta quando extinto foi seu desejo por mim, mas que ela fosse extinta ao surgir-lhe o inevitável desejo de passeá-la de por outros corpos.
Não que sinta ciúmes daquela língua que me chupava.
Não se trata disso, penso, e logo me corrijo: "Se trata disso!"
A língua não poderia passear pelos corpos de outras como passeou pelo meu!
Ter passeado pelo meu corpo, hoje, para aquela língua, não tem nenhum significado, eu sei.
Quem pode garantir, então, que naquela época o teve?
Naquela época, não me perguntava do significado daquela língua sobre meu corpo.
Não precisava. Estava tudo no seu devido lugar, tudo como devia ser.
Aquela língua sobre meu corpo era o que devia ser.
O meu corpo era o lugar daquela língua, sua boca.
O meu corpo pertencia àquela língua, aquela língua pertencia ao meu corpo: ou não?
Nunca vou saber a verdade daquela língua sobre meu corpo.
Para sempre não saberei: nunca e sempre, penso, na mesma medida.
Em nenhum tempo eu saberei e em todo o tempo eu não saberei.
Sem possibilidade de intermédio: ou não?
E se eu o parasse, enquanto ele passa ao longe, e perguntasse o significado daquela língua sobre meu corpo?
Essa língua diria que me preocupo demais com os significados das coisas, que me preocupo demais em dar sentido a fatos, meros fatos.
Isso que diria aquela mesma língua que me chupava: "Meros fatos", diria a língua.
A mesma língua diria "meros fatos" como se fosse outra, sem ser outra, mas a mesma língua.
E eu saberia que essa língua não era outra senão aquela, mas mesmo assim pensaria: "Será outra essa que me fala?"
Essa língua que não guardou o gosto do meu corpo, que misturou o gosto do meu corpo com os gostos de outros corpos, não poderia ser aquela: ou não?
Mas, talvez, todos os corpos tenham o mesmo gosto.
Identicamente o mesmo gosto, penso.
"Ele me chupava", ainda me digo, enquanto o observo parado ao longe.
Não faz tanto tempo: "Na verdade, não faz tanto tempo", também me digo.
A língua dele enfiada entre as minhas pernas, afiada língua, eu gostava!
A língua dele enroscada na minha língua, despudorada língua, eu gostava!
A língua dele no meu seio feito língua de filho, incestuosa língua, eu gostava!
E se eu fosse até ele, enquanto está parado ao longe, perguntasse a verdade daquela língua?
Mas me pergunto: para que saber a verdade daquela língua?
E me pergunto, ainda, se poderia suportá-la.
Não a língua, a verdade.
Pergunto e não me respondo.
O corpo é só um vestido, penso: "E agora, esse vestido veste uma outra alma".
Nada mais resta!
O conto verdadeiro trazido àquela alma antiga, eu me envergonho!
As palavras indecorosas sussurradas àquela alma antiga, eu me envergonho!
A nudez absoluta ofertada àquela alma antiga, eu me envergonho!
O conto, as palavras, a nudez, envergonha-me a alma nova sabê-los.
Olho de longe o rosto dele e adivinho a língua que passeava pelo meu corpo.
"Ele me chupava!".

Mira Kolsevic