quarta-feira, fevereiro 20, 2002

"Digo não ao discurso, à medalha, à fanfarra e aos tambores, à sessão solene, ao incenso, à fotografia de fardão ou em mangas de camisa exibindo as pelancas e a dentadura, não só andor de procissão.
Dá-me tua mão de conivência, vamos viver o tempo que nos resta, tão curta a vida! Na medida do nosso desejo, no ritmo do nosso gosto simples, longe das galas, em liberdade e alegria, não somos pavões de opulência nem gênios de ocasião, feitos nas coxas das apologias, somos apenas tu e eu.
Sento-me contigo no banco de azulejos à sombra da mangueira, esperando a noite chegar para cobrir de estrelas teus cabelos, Zélia de Euá envolta em lua: dá-me tua mão, sorri teu sorriso, me rejubilo no teu beijo, laurel e recompensa.
Aqui, nesse recanto do jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora, eis meu testamento.
Nasci empelicado, de bunda para a lua, uma estrela no peito, a sorte me acompanha, tenho o corpo fechado à inveja, a intriga não amarra meus pés, sou imune ao mau-olhado.
A vida me deu mais do que pedi, mereci e desejei.
Vivi ardentemente cada dia, cada hora, cada instante, fiz coisas que Deus duvida, conivente com o Diabo, compadre de Exu nas encruzilhas dos ebós.
Briguei pela boa causa, a do homem e da grandeza, a do pão e a da liberdade, bati-me contra os preconceitos, ousei as práticas condenadas, percorri os caminhos proibidos, fui o oposto, o vice-versa, o não, me consumi, chorei e ri, sofri, amei , me diverti.
Fujo dos festejos, ao fogo de artifício, ao banquete, fujo ao necrológio, estou vivo e inteiro. Amanhã, passado o obituário de reverências, voltarei ao romance, Bóris, o Vermelho me espera na esquina da máquina de escrever com seu desafio de trapaça e juventude.
Obstinado, vou prosseguir com orgulho e humildade a tarefa de emprenhar nos esconsos da cidade, conceber e parir homens e mulheres, capitães de areia, mestres de saveiro, jagunços, vagabundos, putas, são a inocência e a fantasia, nascem de minhas entranhas fecundadas pelo povo, do coração, dos miolos e das tripas, dos culhões.
Não vou repousar em paz, não me despeço, digo até logo, minha gente, ainda não chegou a hora de jazer sob as flores e discurso.
Saio porta afora para o bulício da rua, Bóris, o Vermelho vem comigo, obrigado por tudo, agradeço e vou adiante, vou me divertir, axé".

Jorge Amado