domingo, fevereiro 03, 2002

Cada uma de nós conta histórias - as suas ou as que inventa, ouve, capta, interpreta, vê.
O cotidiano desfila alinhavando desejos, sonhos, dores, lágrimas, sorrisos, esperanças, medos, descobertas...
Um enorme quebra-cabeça que montamos com nossa aguçada intuição, entrelaçando palavras, desenhando destinos, nossas paixões olhando além: com simplicidade, desafio, aceitação ou arrogância.
Na minha concepção, tudo o que escrevo soa comum.
Na constância do tempo, horas que se somam desencadeando dias, semanas, meses, anos, séculos sem fim na eternidade, sei que minhas histórias já foram vividas, minhas alegrias e desilusões já sentidas, o amontoado de sentimentos e desejos que me possuem já pertenceram a outras eras...
Outra mulher chorou minhas lágrimas e amargou as mesmas perdas...
Riu meu sorriso e foi parte da felicidade de abraçar o homem amado...
Outra mulher também o viu partir, com o desespero do desencanto, e o viu voltar, com a calma agitada dos que se sentem derrotados numa disputa que julgava perdida: perder batalhas para vencer a guerra...
Todas as minhas saudades moram em algum canto no horizonte, minha fragilidade e força pertencem ao mundo...
Os pesadelos da noite, a incompreensão diante da morte, minhas sombras, a inquietação: outra mulher conhece delas também...
Muitas de nós guardam dentro de si silenciosas histórias, numa confraria pessoal de textos secretos, postos lado a lado nas prateleiras do coração.
Algumas conservam no sótão particular um sem número de palavras que não foram ditas, percepções caladas, perigosos atalhos que, de repente, vêm à tona estraçalhando tudo ao redor. Não é bom ter um 'baú de ossos' trancado na memória, mas nem sempre é fácil livrar-se desse pesado abstrato, que vez ou outra abre-se e se lança sobre nós, semeando uma melancolia que a gente diz não saber de onde vem... Mentira: vem do perdão que negamos, daquela mágoa que ainda remoemos, daquele momento ruim que não relevamos e nos abriu um abismo por dentro - buraco insondável que alimentamos com nosso rancor...
Minhas histórias são um reflexo do que sei, aprendi, vivi, detalhes que ardem na minha pele, bagunçam minha mente, confundem-me.
Em outros tempos escrevi intensamente: mais do que uma arte, era um vício, minha maneira de gritar ao mundo meu desapontamento com a vida. É curioso como quando a gente está dentro de rodamoinhos dolorosos, consegue definir com precisão marcante o revés e seus desdobramentos. Talvez a gente se centre demais nos
aborrecimentos, mantendo por longas temporadas sofrimentos desnecessários que podíamos amenizar... É humano...
Mas quando está feliz, uma calmaria arromba as portas de nossa alma e a quietude se infiltra, nos torna tão mansamente tranquilas, que a gente se enrosca numa sutil ausência da necessidade de dizer muita coisa e vai estendendo o presente até o futuro, ansiando o 'para sempre'... Paz é o nome...
Sinto-me assim nesse momento... Tranquei, temporariamente, minha contadora de histórias. Ela descansa agora, sentada no chão do meu antigo quarto escuro - que anda iluminado e aconchegante. Marota, ela sorri do meu eventual silêncio e é cúmplice quando me percebe dedilhando sobre a brevidade de alguns momentos especiais, que ando insistindo em saborear e reservar a quatro mãos...
Nada diverso: é tudo parte de todas as mulheres que me habitam...

Debora Bottcher