segunda-feira, fevereiro 04, 2002

"A tendenciosidade, ou pinturas do coração, é o jogo com a possibilidade, o jogo com a autotentação, do qual bruscamente podem irromper a violência, o mal." Buber

Martin Buber - afirma numa passagem do "Imagens do Bem e do Mal" que o fruto proibido é o fruto do possível, aquele que provado, permite-nos arquitetar, imaginar, possibilitando transformar em realidade os produtos da imaginação, sobrepondo-se a uma realidade primordial, não inventada, essencialmente boa, divina. A expulsão do Éden não teria sido em decorrência da "desobediência em si", mas da posse da imaginação que tornou o homem "como Deus", mas que não pode igual ao Criador, ser superior a ela... Muito pelo contrário, entra e desabrocha nela, na sua capacidade de fantasiar. Tudo o que é imaginado aspira corporificação e é daí que pode ser gerado o Mal.
Lembram-se daquela máxima "pecamos por pensamentos, palavras e obras"? Sempre que ouvia isso, até um passado mais ou menos próximo, eu sempre corria ao banheiro para me lavar com água quente e um bom emoliente (infalivelmente, porém, terminava atraído por friccionar as coxas, mamilos e pintos próximos). A palavra (pensada ou pronunciada) pode ser a bolsa uterina da obra, e nessa qualidade, o sumo venenoso, o bago responsável pela danação. E se a luxúria, a intimidade com o Mal é decorrência da "fertilidade do possível" que podemos converter, a qualquer tempo, em realidade apócrifa, eu me pergunto sobre o que fazer para não me contaminar até o último poro... Não consigo me livrar da idéia de que sou um fruto suspeito de Deus, atestado de uma provável imperfeição, uma obra leviana Dele, e aparentemente não muito diferente das minhas próprias produções adversas... Por outro lado indago se consigo reservar às minhas obras a possibilidade de redenção das suas misérias inerentes? A mim são concedidos, por algum golpe de mestre divino, instantes em que nenhuma fantasia ferve, nenhum pensamento, nenhuma idéia... Os martírios das divagações, dos sonhos, de todas as infinitas dualidades desprendem-se do momento e tudo passa a ser união, contato imediato, fusão, ressurgir de paraíso... São ciclos de exílios e anistias o que vivemos. Por mais que eu sonhe, boline tantas tentações, não estou condenado ao degredo irredutível.
O reino ou os reinos do céus são estações, portos mais ou menos periódicos que os meus pares proporcionam. E os meus pares são homens, cachorros, rochas, amigos, amantes, violetas, carvalhos, montanhas, perfumes. A minha desdita: desejá-los. A minha morte: possuí-los. Ideal seria flertar despojado, cortejar como quem acrescenta cores e novas formas a uma tela, beijar, gozar, sumir, reaparecer como uma Senhora de Lourdes, de Fátima à pastorzinhos, ou Dom Sebastião, emergindo do fundo do oceano. E agora estou transgredindo porque invento compulsivamente e atribuo corpo de texto ao martírio, sem possibilitar ao que está escrito se desfazer em núpcias. A premeditar, melhor seria recordar... Não interpretar sonho nenhum, apenas ouvi-lo, simplesmente, como voz de um antigo e respeitável bisavô...
Sonhei, ontem, que participava de uma novela, e um homem reclamava, criticava minha atuação. Achava-a pouco definida, apagada, inconsistente... Ele estava na platéia, percebia apenas a representação, a mímica pobre... O que se passava comigo não se podia traduzir em script, nem sequer em linguagem para surdos-mudos, mas como era sonho - tendencioso de possibilidades -, converti em imagem a efervescência interna... De imediato surgia um carro alegórico imenso, negro e verde, repleto de dragões chineses enroscando-se em hermafroditas (entre eles, eu) de peles transparentes. O que era aquilo? Uma metáfora do inferno, com o que eu o presenteava, para "compensá-lo" por não haver sido convincente o suficiente para atrair sua atenção... Um souvenir espalhafatoso do Mal, uma criação perversa erigida sobre o meu simples, muito fundo querer bem a esse amigo. E aí, nesse instante, da platéia, ele reagia positivamente, entusiasmado com a devassidão dos meus trejeitos. No dia a dia eu tenho necessitado da efusão diabólica do verbo e do gesto para me fazer "outro" a alguém e viver o diálogo mudo de uma salvação temporária.
Custa-me o delito de Adão e Eva... A partir dele as fusões místicas, senhas para um eterno retorno, só me são possíveis mediante grande quantidade de adereços: das próteses de tudo até os murmúrios nas crateras dos ouvidos...
É como se Lúcifer nunca desistisse de querer me vender a sua alma em prestações intermináveis.
Se o desejo é, por prevenção, recriminável, no mínimo desnecessário, uma vez que a plenitude não é inventada, e repousa sob todos nós, existindo no formato de eterno Bem divino, que eu me contente com a poesia temporariamente amarga dos olhares que não estarão voltados para minha cara lavada.

Antonio Mattos