domingo, março 03, 2002

"Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha
mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.
Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças
obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os
remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o
melhor da obrigação é quando à força de embaçar os outros, embaça-se um
homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação
penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que
diferença! Que desabafo! Que LIBERDADE. Como a gente pode sacudir fora a
capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se,
desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque,
em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem
estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial,
perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele
não se estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se
nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão
incomensurável como o desdém dos finados."

Machado de Assis
Brás Cubas