terça-feira, outubro 22, 2002

ZÉFIRO

Na coxia do teatro, envolve as formas curvilíneas num xale negro. Tira os acessórios que cobrem as extremidades: meias sete oitavos com renda marcando a coxa, luvas escuras na altura do cotovelo. Só a combinação de cetim, cor da pele, acompanha seus relevos. Mira-se no espelho, o olhar amendoado pelo delineador e os enormes cílios acentuados pelo rímel. O xale escorrega e entrega a pele tatuada, nívea. Prende os cachos castanhos num coque desalinhado. Vê-se como as outras. Não há nada de diferente naquele semblante. Lembra do que ele disse ontem num bar enfumaçado do centro da cidade, e continua não encontrando nada de especial no que vê refletido.
Inadvertidamente, o zéfiro sopra com força e move objetos do camarim, provocando o vôo de plumas coloridas pelo ar... chapéus orbitam pelo ambiente, máscaras multicoloridas planando, um jarro de flores desaba. Não se importa, ignora os cacos espalhados pelo chão... Joga a cabeça para trás, gosta daquela sensação, deixa-se tomar por ele que percorre a derme sem pedir licença, invasor. Levanta-se da cadeira, escancara as janelas e permite que entre com mais força...abre os braços e o recebe em estreito contato: fecha os olhos.
Inconsciente, revela o portal, a tênue linha que a faz redescobrir a mágica e permite que o feitiço se estabeleça nesse contato ancestral. Ela é como a noite lá fora, senhora de todas as estrelas; lânguida como a lua, deusa perpetuada pela forma redonda que cobre as cidades com seu arsenal de véus prateados.
Sabe que não pode ser retido nas mãos. É livre, solto, faz parte das correntes secas e movimento de massas oceânicas. A cada súbita visita possui um cheiro diferente...em cada lugar um outro vento se levanta...revolve energias, derruba castelos, destrói fortalezas, desarma certezas, amálgama outra mulher.