terça-feira, junho 25, 2002

A BRUXA ANTÔNIA

Lageado é um lugar mágico por si só. Fica no alto da serra da Bocaina, na divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro, pouco antes da entrada da reserva nacional. Um casarão dos tempos do Brasil colônia, um friozinho agradável do verão da montanha e um estranho bosque de pinheiros onde mora a bruxa Antônia traduzem bem o cenário afrodisíaco. Dizem por ali que quem entra na
chamada Floresta Encantada nunca mais sai. Ouço a lenda local com curiosidade e penso que deve haver muitos bons motivos para não se voltar de um lugar. De qualquer forma, o bosque atrai e ao mesmo tempo faz tremer as pernas. Passei pelo menos uns três dias só observando de longe, tentando imaginar o que bruxa Antônia fazia ali dentro por todo o dia, e noite também por séculos a fio. Aliás, quando o sol deixa o céu de Lageado, uma orquestra de vozes entoadas por animais da mata substitui o assobio do vento. Do miado da jaguatirica ao relincho assustado dos cavalos que pastam sob as pereiras, o período dominado pela deusa lua se torna aconchegante ao pé do fogo brando da lareira. Ao sabor de chocolate ou vinho, as histórias sobre os feitos da bruxa Antônia recheariam livros mil.

Enquanto mascam tabaco, contam em detalhes que quando moça lá pelos idos de 1600, Antônia era daquelas mulheres insaciáveis. Amou dezenas de caboclos e despertou a ira de muitas mães e esposas. Não teve filhos. Certa feita encontrou-se com Rodrigo, filho de um próspero fazendeiro de Bananal, cidade da vizinhança. Deitou-se com ele uma única vez por compromisso e logo partiu
para outros amantes menos famosos. Rodrigo adoeceu de paixão. Rastejava-se aos pés de Antônia. Ela desfrutava do moço o quanto podia. Dizia a mãe, que a bruxa lhe sugava a vida. Enfim, Rodrigo morreu. Pai rico e cheio de poder, Bartolomeu, que nunca pôs fé na intuição da esposa preferindo acreditar que Rodrigo estava doente, saiu à caça da mulher que enfeitiçara o filho e o
levara à morte. Ao deparar-se com Antônia, sentiu um arrepio na espinha ao perceber-se atraído por aquela moça de cabelos desgrenhados e corpo insinuante sob um vestido de chita. Amaldiçoou a feiticeira e decretou que ela fosse levada para o bosque e que de lá nunca mais saísse sob o risco de parar na fogueira.

Para alívio das moradoras e tristeza dos moradores da vila, Antônia foi levada até a entrada do bosque por meia dúzia de matronas. Depois ninguém mais a viu. Bartolomeu passava as noites em claro desde o encontro com a moça. Suava frio e tinha sonhos condenados pela fé cristã. Decidiu ir até o bosque para pôr-se à prova. Mas no fundo desejava deliciar-se no corpo de
Antônia. Afinal, ninguém iria saber porque ela não sairia para contar.. Ao se embrenhar entre os pinheiros, de pronto foi afrouxando o cinto das calças e exasperando os pensamentos libidinosos. Mas teve de caminhar por umas quatro horas. Chamava por ela usando termos chulos e finalmente a encontrou quando a lua já descansava. Sob a aurora ela apareceu nua, linda como nunca.
Bartolomeu caiu sobre os joelhos e implorou por uma noite de luxúria a fim de acabar com o fogo que lhe queimava as entranhas. Bartolomeu nunca mais voltou à vila e assim, Antônia ganhou fama de bruxa e eu descobri que o segredo da Floresta Encantada era sexo. E qual rapaz de 22 anos não quer uma boa noite de sexo. Foi assim que a lenda ultrapassou os limites de Lageado.

Já estava de malas prontas para descer os 26 quilômetros até a cidadezinha de São José do Barreiro quando um moleque bateu exasperado na porta dos fundos do casarão. Gritava pela anfitriã Josefa dizendo que três rapazes da aldeia haviam desaparecido na última noite. Ofegante o menino disse que eles haviam entrado no bosque para trazer Antônia de volta ao mundo real. Dona
Josefa fez o sinal da cruz cristã ao mesmo tempo em que chamava pelas entidades afro pedindo proteção. Saíram todos em correria e eu junto, com o coração batendo na boca. Sentia um misto de medo e excitação. No limite do bosque, ninguém se atrevia a entrar. Nem mesmo Napoleão, o vira-lata da pousada, dava um passo à frente. Um anel de neblina envolvia a Floresta Encantada e as mães dos rapazes desaparecidos berravam os nomes dos filhos num desespero horrendo. Pedi então que me providenciassem água e alguma comida, coisa pouca para só dois dias. Voltaram com uma mochila pequena.
Entrei.

Não vou dizer que não estava apreensivo, mas pensava comigo mesmo que era apenas um bosque de pinheiros, conhecido entre os botânicos como floresta morta por não abrigar animais. Por entre os troncos vi que algo reluzia uns metros à frente, quando me aproximei havia ali um lago pequeno e à sua margem uma casa de pau a pique. Reparei que o entorno da casa estava forrado
de hortelã e que à porta havia um pentagrama pintado em vermelho. De cócoras, uma velha lavava roupas encardidas. Aproximei da mulher com certo receio. Seria ela a bruxa Antônia? Uma mulher franzina já com tantas marcas do tempo estampadas na fronte?
-- Procuro por três rapazes da aldeia que entraram aqui... -- disse sem conseguir terminar a frase.
A mulher ergueu os olhos em direção aos meus e não disse palavra alguma. O azul pálido daquele olhar fez o lago perder o brilho. Gaguejei para dar continuidade à conversa.
-- Onde eles estão? -- perguntei.
No silêncio que imperou por poucos segundos perguntei para mim mesmo sobre os atributos sexuais de Antônia. Mal esboçava um sorriso quando num gesto ríspido a mulher levantou um dos braços e percebi que o tempo iria virar.
Uma tempestade começava a se formar. Senti uma zonzeira e quando me dei conta estava no escuro pleno. Nenhuma luz. Pensei que estivesse cego. Fui tateando o lugar e descobri que estava no interior do casebre. Quando coloquei as mãos no que seria a porta senti algo me tocar as costas.
-- É ela -- pensei. É Antônia. Entreguei-me à maciez daquela pele e às curvas. Experimentei a entrega, a submissão, o gozo contínuo. Senti-me nas mãos de três mulheres. Possuía a virgem, me encolhia no colo da mãe e sentia-me minúsculo diante da sabedoria da anciã. Não sei ao certo quanto tempo durou o ato sexual ao qual me submeti sem restrições, mas desejei que
fosse eterno. E quase foi.

Abri os olhos por conta do sol. Estava nu, deitado na margem do lago. Lembrei-me da orgia da noite anterior e rapidamente entrei nas águas para banhar-me. Ao nadar de uma margem a outra senti cansaço. Certamente seria por conta do esforço ininterrupto da véspera. Pensei comigo mesmo que queria mais uma dose. Clamei pela presença de Antônia. Nada. Supliquei por mais uma
noite em seus múltiplos braços e pernas. Então pude vê-la no entardecer. Bela, nua e com um espelho circular que pendia entre os seios fartos. Aproximei-me já na expectativa de repetir os devaneios da noite anterior. Estava tão extasiado que tropecei no meu próprio pé. Apoiei-me no braço da bruxa Antônia e pude ver minha própria imagem no pingente. Havia envelhecido pelo menos uns 20 anos. Assustado dei um passo a trás e ela rapidamente virou-se de costas e começou a correr em direção à parte escura do bosque.
De longe pude ver as mechas de cabelo branco refletirem a luz da lua. Entendi com clareza absoluta a magia daquele bosque. Vesti-me o mais rápido que pude e saí em busca das bordas da floresta. Depois de horas de caminhada pude ouvir ao longe sons de brincadeiras de crianças. Era o fim. Uma angústia tomou conta da minha alma. Virei para trás e pude ver Antônia na névoa que alinhavava os pinheiros. Quis voltar, mas segui em frente.

Vez ou outra enquanto meus alunos de botânica se esforçam para digerir uma prova ainda me perco nos mistérios de Antônia. Penso em cada detalhe, cada carícia, cada gota de suor, cada som, cada cheiro... Por muito tempo acreditei que tivesse perdido meus melhores 20 anos num corpo de mulher, mas hoje sei que dediquei esses 20 anos a uma pesquisa minuciosa e prática do princípio feminino.

Frater Aamon