sábado, junho 08, 2002

VILA ISABEL E AS BORBOLETAS DA PATAGÔNIA



Nem Ipanema nem Vinícius, só Boulevard-e calçadas com notas musicais.
Falo de Vila Isabel, zona norte do Rio.

O slogan na minha camiseta gritava no peito: "modéstia a parte eu sou
da Vila". Península de legendários pés-sujos, ponto de órbita de
mitológicas escolas de samba, digo-lhes de coração convicto, ela é da
paz. No entanto, cáusticas madrugadas contabilizam mortos e feridos
nas manchetes do cotidiano dela.

Dolorosa estatística: o Rio de Janeiro tem um dos mais altos índices
de homicídios do mundo. Segundo estudo da Organização das Nações
Unidas Para Educação, Ciência e Cultura, 26.3 mortes violentas
ocorreram para cada 100 000 pessoas no ano 2000. A estatística pode
ter melhorado desde então. Provável que não melhorou.

"Pela terceira noite consecutiva", dizia a reportagem do JB terça-
feira passada,"moradores do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, saíam
de casa, assustados com as cenas da guerra do tráfico vividas na
última sexta-feira". Sendo que o pedaço de rua em que um ser humano
mora é sua mais íntima relação com o mundo. Não importa o sotaque e o
samba-enredo: Mogadisho, Bogotá, Kabul, ou Rio. Se a esquina vira
mundo cão, a relação é um estupro.

A violência mata o homem e seus sonhos. Pequenas fantasias urbanas,
de família, residência, de amigos reunidos, transformam-se em longas
noites mal dormidas.

Tudo aconteceu na subida do Morro do Pau da Bandeira, próximo ao
Morro dos Macacos, na zona norte do Rio de Janeiro. Armados de
metralhadoras, dezenas de homens invadiram casas e assassinaram
traficantes de uma quadrilha rival. Homens, mulheres, e crianças
levavam o que podiam, talvez até os sonhos, em pequenas sacolas,para
buscar segurança fora de casa.

Daí que banco de praça virou campo de refugiado.

O intercâmbio de tiros entre quadrilhas rivais nas favelas do Rio
é acontecimento corriqueiro. A novidade é a evasão domicíliar dos
moradores do morro.

Semanas atrás, o Estadão noticiava a declaração de um assessor do
Presidente Francês, que, numa desastrada indiscrição pública,
prometia a seus constituintes que a França não iria virar o Rio. Je
ne çe pas, malandro. O Senegal, ex-colônia, já cuidou do ex-império,
humilhando-o na abertura da Copa. Mas o Brasil está de pernas para o
ar.

Num cruzamento de chumbo grosso da zona do agrião, Vila Isabel
converte-se em simulação de uma esquina em Ramala.Um cronista carioca
aproveita para fazer sarcasmo crítico,"atenção! não é a Palestina!"

A situação agravou-se a tal ponto que as polícias Civil, Militar,
Federal e Rodoviária, formaram um 'força-tarefa'para discutir a
violência. Deram-lhe um nome comprido e incumbências vagas: Grupo
Executivo de Ações Conjuntas de Segurança. Nela falta a representação
do Comando Vermelho.

O prefeito César Maia, cético de gelo, diz que o objetivo do
conglomerado é fazer reuniões. Achei a iniciativa um indício
animador, todavia, comentários das autoridades envolvidas no esforço,
corroboram o cinismo do prefeito. O superintendente da Polícia
Federal, Marcelo Itagiba, por exemplo, foi logo dizendo que "a
violência não vai desaparecer de repente". Já a governadora Benedita
da Silva avisou que a luta contra o crime organizado é "um processo
lento". Creio que sugerem paciência, virtude que desenvolvemos e
aperfeiçoamos nos últimos duzentos e poucos anos da república.

Comprovação de que a questão preocupa é que há uma Comissão Contra a
Violência na Assembléia Legislativa do Rio. Seu presidente,deputado
Carlos Minc (PT), esmera-se no óbvio:"vamos admitir a realidade: a
população está com medo".

E tome grupo executivo disso, comissão deliberativa daquilo,juntas
de estudo daquil'outro. Burocratas avaliam o efeito do vôo das
borboletas da Patagônia no crepúsculo quente do Engenho Novo.
Enquanto deliberam e criam comitês, as cinco escolas municipais do
bairro foram fechadas. Está certo que o saber não ocupa lugar,mas é
preferível matar aulas a morrer na peleja armada de gangues rivais.
Afinal de contas, bala perdida nunca encontra cabeça de general.

O toque de recolher 'informal'imposto à cidade outro dia, teve um
àspero sabor de guerra convencional.

Quero saber como fica a merendeira Marly Silva, nascida e criada no
epicentro dessa versão tropical do purgatório. "Já estou juntando
dinheiro [para me mudar do morro]. Mais dois anos e paro de sentir
medo". Ao ler o depoimento, tive uma dessas incontinências
sentimentais às quais me julgo refratário. Ou me julgava.
Chorei, no olho esquerdo, uma lágrima fugaz. Tristeza que não explode
em soluços, manifesta-se silenciosa, involuntária, numa retina
discordante da outra que não chora. A secreção espontânea logo
desidrata-se, e volto à frieza dos números estatísticos, aos dados
sociológicos, aos jornais.

Uma questão emocional para mim: o Rio é minha vila; Isabel, meu país;
e o Brasil, vizinho deles. Como se tudo fosse uma povoação insular,
carioca e universal, plantada no mapa do Brasil favelado.

E um procedimento infame converte-se em prática habitual: quando a
noite vem, homens pobres do morro, mulheres resignadas, gente do
samba, crianças envelhecidas, desertam de suas casas-lá no setor
palestino da Vila.

Parece até que o Feitiço da Vila transformou-se em maldição:
as calçadas desafinam, as escolas ensinam como sobreviver durante
tiroteios, maridos passam noitadas na farra e alegam seqüestro
relâmpago.

Num trago só, bebo o Rio Maracanã poluído, o traço francês da 28 de
Setembro rabisca meu centro nervoso, e Noel Rosa, raquítico, canta
para mim, num sonho. "Por onde passo/Paixão não me aniquila/mas tenho
que dizer,senhores:/modéstia a parte eu sou da Vila". (Vadico e Noel
Rosa)

Chego a sentir arrepios.

José Rocha Rangel