segunda-feira, janeiro 07, 2002

Acabei de ler uma matéria no Prosa & Verso, onde o jornalista Marcus Penchel faz análise do romance Aldous Huxley, ‘Sem olhos em Gaza’, escrito em 1938 e reeditado agora pela Editora Globo.
Fiquei pensando nas palavras de Marcus e me vieram à cabeça os meus muitos erros. No ímpeto, no auge da minha ação, eu comumente esqueço crases, escrevo palavras erradamente e quando vejo: ta lá um corpo estendido no chão. Já foi, já era. Hoje mesmo escrevi um recado num blog querido e lá se foi meu ‘hein’ grafado ‘em’. Quando dei por mim o fato já estava consumado, o dedo já tinha apertado o send. Respirei fundo e disse agora babau. E, assim, vou cometendo meus deslizes. Com franqueza? Não tenho que provar xonga monga pra ninguém. Como eu já disse a Jomara uma vez: gosto de você porque você é! Não precisa fazer apologia do que é, porque é! É isso. ‘Quem sabe faz a hora não espera acontecer’.
O resto é o resto.
Tenho um amigo astrólogo, Alexey, o Lasher para os que vivem nas madrugadas insones do IRC. Foi uma das primeiras pessoas que conheci em 96, quando a internet e os programas de bate-papo ainda eram uma possibilidade utópica para o restante da população. Era um dialeto falado pelos que já estavam plugados no cyberspace.
Lasher é um ser gostosamente liberto, talvez eu me aproxime mais dele na virtualidade do que pessoalmente. Admiro-o não só pelas tiradas inteligentes e sua capacidade sedutora de agregar pessoas, gente diferente, criaturas de meios completamente opostos e distantes. Em suas palestras, ele ri dele mesmo. Conta os mais nonsenses casos e leva o público ao delírio, a gargalhadas estrondosas, justamente pela sua falta de pudor. Quem sabe um dia ainda vou rir muito de mim e debochar? O problema aí é despir-se do ego, para estar acima do julgamento alheio, sem a preocupação com o outro, com o que o cerca. Um ponto único no meio do caos. Quando eu pegar o endereço da page dele, que se não me engano fala exatamente do Kaos, vou pôr aí ao lado pra vocês conhecerem um pouco das idéias dessa pessoa sadicamente adorável.
Deixa eu voltar aos mecanismos de blog. Débora está sendo paciente, como sempre, com minha total falta de intimidade com o agatemelês. É ela que tem me ajudado a dar uma cara pra esse monte de letras espalhadas e que tento por sentido. Será que algum dia conseguirei fazer as coisas belas que ela faz? Tomara! Aliás, isso da estética por aqui é algo muito interessante. A pessoa conhece os mecanismos, usa os procedimentos certos, mas no final a coisa acaba ficando pastel demais. Ou ainda, usa os recursos que domina e não harmoniza o belo. Esse é um dom que essa moça tem de sobra, produzir cores, gestos e palavras com beleza. Um recurso para poucos. E eu tenho o prazer de contar com alguém que possui esse dom para pinçar a estética. Sorte minha!
Queria terminar deixando um pouco das idéias de Huxley comentadas por Marcus, aí vai:
[...]
No moinho, com escravos, em Gaza, como situa a citação de Milton que faz epígrafe e dá titulo ao livro, é fácil ficar cego. Esposas e maridos, guias e massas, poderosos vigias de plantão e supostas vítimas, fêmeas e machos, inexpugnáveis torres gêmeas, todos com olhos para ver e preferindo saborear a desgraça alheia. Que tal dar ao (des)afeto as mesmas condições de luta? Por que isso aborrece? Medo das palavras? Dinheiro? Fome? Por que uma opinião importa? O que atrapalha? Algo rói?
Esta é a realidade intelectual do Ocidente cristão: quem tem bens não os saboreia nem saboreia o fato de tê-los, mas apenas o fato de que outros não os têm.Isso não apenas explica, como justifica a desigualdade de distribuição, tornando o capitalismo essencial não só ao Ocidente como ao cristão. É a falta que não ama, não flagrada por Drummond.
Escrito há mais de seis décadas, o livro de Huxley parece ter muito a ver com o momento global, isto é, local. Será que o admirável mundo novo, afinal, entrou na sua cabeça? Olhos esgazeados no brilho dessa manhã tão clara que o milionário saudita virtual e sacramental expôs como um espelho, contemplam as feridas na sala refrigerada à morfina, insensibilidade de cúmplice com o gelo. Tintim!
O mundo caminha a passos de canguru rumo à primavera da dor e se sente leviano, exuberantemente pós-moderno. Triste sociedade de avidez, sovinice, mesquinharia, vaidade e imensa pobreza. Os egos se fartam de poder, como abelhas sangrentas. Zuuum! Há 500 anos chorando a perda da fantasiosa virgindade, dona Índia Ocidental quer demolir alguém e se encalacra na própria teia. Ah, bem...Huxley atualiza esse rancor que é o sistema, antes mesmo de o sistema se sentir sistêmico e até antes de perceber que a melancolia antisistêmica que criou é apenas o discreto charme dessa civilização. Rancor, rancor é o teu nome, ó mãe de toda miséria e perfumaria. Ave!

O zen, a mescalina e a união com o inimigo
Não sei se tal resenha é publicável. O que talvez a proteja é que não contraria as leis do mercado: recomenda explicitamente o livro. Isso basta? Uma tese da personagem central (do autor?) é que “foi tolo Satã ao querer tentar um Messias(...) com a fama, o domínio, a ambição – coisas cujos frutos inevitáveis são a violência e a coerção!”Não foi exatamente o que aconteceu? A sede de domínio levou “um Messias”precisamente à experiência do martírio expiatório e seus frutos seguidores à experiência transmedieval da martirização vingativa. “Comparado com a sede de glória, o puro sensualismo é quase inofensivo. Se Freud tivesse razão e o sexo imperasse, nossa vida seria quase edênica”. Curioso como Jesus, maior exemplo e símbolo do egoísmo e de seus frutos, tenha se tornado exatamente o maior exemplo e símbolo do altruísmo. Santa dicotomia.
Huxley se ergue contra esse dualismo. Unidade! Unidade é o seu lema. União com o maior inimigo: adesão interior a sua potencial grandeza, ainda que invisível. Veículos: talvez o zen, talvez a mescalina e outras drogas. “As portas da percepção” fez o maior sucesso na década de 60( o romancista morreu em 63). De lá para cá a intoxicação perdeu o brilho e todas as viagens baixaram. Não eram drogas que abriam a percepção, era esta ampliada que se consolava na droga ante a barreira desse sistema que agora aflora tão evidente, face e verso flagrantes, em Cabul e Manhattam, irmãs religiosas globalmente religadas como talismãs.
Huxley indaga-se da possibilidade da paz, da bondade, do amor. Em suma, da solidariedade humana. A mais básica constatação é que isso tem que começar de dentro, em cada indivíduo: ‘Estados e nações não existem como tais. O que há são apenas pessoas”. Se as pessoas mudam, Estados podem mudar, como resultado cumulativo das mudanças individuais. Mas não basta saber isso – segundo o romancista, “saber, todos nós sabemos”; o negócio é fazer: “a propaganda de paz deve consistir numa série de instruções para a arte de modificar o caráter”. O inferno diz ele, “é a incapacidade de sermos diferentes da criatura segundo a qual ordinariamente nos comportamos”.
A mudança essencial, seria o fim da indiferença, que é “uma forma de preguiça; e a preguiça é, por sua vez, uma dos sintomas da falta de amor(...). Aquilo que amamos, que nos interessa não dá preguiça”. Bem, o amor é a chave. Mas “como ser simultaneamente desapaixonado e não indiferente, sereno como um velho e ativo como um jovem?”. Cientes de que o mundo está “cheio de ambiciosos e avaros semeadores de discórdia”, a única atitude construtiva é a da unidade: amar o potencial de beleza mesmo e sobretudo onde só há degradação. “Unidade da espécie humana, unidade de toda a vida, de tudo que vive”, o que sem dúvida incluiria o fim do consumo de qualquer espécie de carne. É uma “afeição corajosa”, que “restitui o louco à sanidade mental, transforma o selvagem hostil em um amigo, domestica o animal feroz”. [...]