terça-feira, janeiro 08, 2002

Tenho que falar no ‘Só as mães são felizes’ escrito por Lucinha Araújo. Eu sei que isso faz tempo, mas sinto que muitas vezes nunca existe essa percepção cronológica quando o assunto é Cazuza. Revivi seus poemas musicados, os secretamente feitos como na despedida da avó, a descoberta da doença, a compulsão que não se calou frente ao HIV. Nem gosto de pôr a sigla em maiúsculas, como fiz aí na outra frase, mas fazer o quê? Diante do imponderável acabamos sendo bonecos, joguetes, mesmo que tentemos constantemente controlar a vida, os batimentos cardíacos. Maktub acaba sendo o que dita nossos próximos passos, as pegadas que deixaremos impressas na areia da existência.
E novamente a morte de Cássia foi lembrada. Falei da minha vibração com a Malandragem descrita e sonorizada por Frejat e Cazuza. Contei a estória dessa música. Foi feita e dada a Ângela Ro Ro que acabou deixando-a engavetada em alguma urna velha. Frejat, lembrando-se que nunca havia sido gravada, pediu a Ângela se podia dar a música para outra cantora gravar. Ro Ro sacudiu os ombros e liberou. De repente a música estourou, chegou sacudindo as ondas do rádio, mexendo com nossa essência, com o nosso pileque transgressor cotidiano, e virou sucesso absoluto na voz dela, de Cássia. Frejat voltou a se encontrar com Ângela que acabou fazendo um comentário melodramático por ele ter consentido que outra gravasse a música dada a ela em primeira mão. Uma bobagem afinal. Como disse Frejat numa entrevista, parecia que a música sempre esteve esperando por Cássia. Era ela quem devia gravar o som, pôr aquele vozeirão, aquele sorriso sacana, dar força e vida ao poema. Ela era malandragem.
Gosto desses que têm esse brilho nos olhos. Que nos deixam sempre uma reticência a ser descoberta. Aquilo que nunca se vê de imediato. É a clara sensação de que há muito mais a ser descoberto, aos poucos, sem agressão. É como uma foto em preto e branco, propositadamente em sombras, às vezes penumbra, onde a silhueta descreve a trajetória sem mostrar nada, ou quase nada. Os poros, os pelos, as ondas, a textura, essa fica para depois, no clarão do dia ou impresso pelo holofote lunar.
E certamente acabo sendo atraída por esses de vida singular e que fogem da normose coletiva. Aquele estado que acaba levando a todos a famigerada ‘zona de conforto’. Que de tão previsível acaba ficando bolorada, cheia de fungos e coisas velhas do tempo. Vejo esses mestres da poesia moderna como os grandes desafiadores da dicotomia, como diz Baudrillard, aqueles que perderam a capacidade de crer e sonhar. Dos que se apegam ao que já está aí e nada tentam de novo. Acomodam-se em suas cadeiras giratórias e seguem, como robôs, a rotina que os espera às sete da manhã seguinte.
E eles nem sabem, se realmente haverá um amanhã.
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"A música rock veio mudar as tradicionais músicas dos homens de negócios para uma música mais livre e sem preconceitos. A música rock reflete um comportamento erótico, para alguns destrutivo, mas na minha opinião é apenas um meio de desabar as estruturas. A música americana popular até mais ou menos 1960 estava prêsa aos empresários, homens de negócios que comandavam toda a publicidade da TV, que mandavam e desmandavam nos artistas, e isso não dava liberdade artística para os compositores. A música rock trouxe uma nova concepção de som e música."
( Redação de português - Cazuza, aos 13 anos )


Você nunca varou
A Duvivier às 5
Nem levou um susto Saindo do Val Improviso
Era quase meio-dia
No lado escuro da vida
Nunca viu Lou Reed
"Walking on the wild side"
Nem Melodia transvirado
Rezando pelo Estácio
Nunca viu Allen Ginsberg
Pagando michê na Alaska
Nem Rimbaud pelas tantas
Negociando escravas brancas
Você nunca ouviu falar em maldição
Nunca viu um milagre
Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
Nem nunca quis ver a face de Deus
Já frequentei grandes festas
Nos endereços mais quentes
Tomei champanhe e cicuta
Com comentários inteligentes
Mais tristes que os de uma puta
No Barbarella às 15 pras 7
Reparou como os velhos
Vão perdendo a esperança
Com seus bichinhos de estimação e plantas?
Já viveram tudo
E sabem que a vida é bela
Reparou na inocência
Cruel das criancinhas
Com seus comentários desconcertantes?
Adivinham tudo
E sabem que a vida é bela
Você nunca sonhou
Ser currada por animais
Nem transou com cadáveres?
Nunca traiu teu melhor amigo
Nem quis comer a tua mãe?
Só as mães são felizes...