sábado, janeiro 19, 2002

Chegou do trabalho cansado, jogou os sapatos no canto do quarto, retirou a roupa suada por um dia de calor e deixou a água correr pelo corpo. Secou-se com a toalha e deu uma última olhada displicente para seu rosto abatido no espelho.
Quando se deitou, percebeu que sua esposa já respirava profundamente, indicando que já dormia a algum tempo. Pensou em ligar a TV, mas vendo como estava exausto, decidiu-se por dormir. Seus pensamentos começaram a correr entre os 1000 assuntos diários... pagar a conta de Luz, o colégio das crianças, chamar a atenção do funcionário que falhou...

Dormiu. Um sono pesado e sem sonhos nas primeiras horas.

Subitamente abriu seus olhos. Não estava mais em seu quarto, nem deitado em sua cama. Estava defronte a um templo.
O templo se estendia até onde à vista podia alcançar para ambos os lados de uma grande porta de Ferro que, apesar de enferrujada, demonstrava a importância do que se escondia dentro do edifício. No meio da porta, uma fechadura e uma chave pendurada.

Por impulso estendeu a mão e tocou a chave. A figura de uma leoa alada surgiu diante de si e urrou:

Aquele que deseja adentrar o templo do conhecimento precisa desvendar seus mistérios! Leia a chave!

Ele olhou para chave em sua mão e leu:

SABER

Sentiu-se tranqüilo, afinal, tivera estudado toda a sua vida para ser um sábio. Sabia mistérios de vida e morte. Mistérios Naturais que escondiam-se a maioria das pessoas. Seria fácil comprovar isso.

A esfinge olhou e gargalhou dizendo:

Achas que sabes muito? Feliz é aquele que compreende que a sabedoria está em si próprio.

Foi então que ele parou. Descobriu o quanto de ilusão seu orgulho era capaz de impregna-lo. Lembrou-se da natureza sábia que ensina que aquele que se conhece é capaz de conhecer o TODO. Começou a definir o SABER para a esfinge:

O Saber é compreender-se por completo. É entender que temos várias facetas desse mesmo ser chamado EU. É compreender que somos muitos em um só. Somos como nos vemos no espelho (lembrou-se das experiências de auto-conhecimento defronte a esse instrumento), como nossos pais nos vêem, como nossas relações amorosas, nossos filhos, amigos, chefes e funcionários, enfim como somos vistos nos diversos meios que nos cercam. A partir desse conhecimento ou reconhecimento, temos de procurar nos adaptar da melhor forma possível a que todos esses reflexos sejam extremamente parecidos. Para isso, é necessário conhecermos nossas habilidades, fraquezas, paixões e mágoas. Como seria possível tentarmos conhecer o UNIVERSO que nos cerca, quando nem ao menos conhecemos a nós mesmos? O Saber é o primeiro conhecimento necessário, sem ele, jamais poderemos compreender os mistérios que cercam a nós e a nossos semelhantes.

A Esfinge sorriu, arreganhando os dentes de satisfação e deu passagem. Ele imediatamente abriu a fechadura da primeira porta, símbolo do ferro que nos prende dentro de uma imagem falsa de individualidade. Entrou num salão muito pouco iluminado.

Ao final do salão, viu uma Luz no final de um túnel. Dirigiu-se a ele. Deparou-se com uma porta feita de fogo. Grandes labaredas impediam que se vise o que havia do outro lado. No meio da porta, mais uma vez uma fechadura e mais uma vez uma chave pendia na parede ao seu lado direito.
Pegou a chave e quando se dirigia para abrir a porta, as chamas cresceram, quase engolindo sua mão. Ele recuou.... Foi quando ouviu a gargalhada:

Mais uma vez será necessário que decifres a chave que está em suas mãos!

Era mais uma esfinge. Só que dessa vez era vermelha, da cor do fogo que impedia sua passagem. Ele leu mais uma vez o que havia escrito na chave:

OUSAR

Lembrou-se do que era a intenção magicka. Que de nada valia seus feitiços e rituais se não acreditasse no sucesso dos mesmos. Lembrou-se do que tinha aprendido:

Nada é impossível!

Começou a pensar mais uma vez no auto-conhecimento. Nascemos todos fadados a Morrer. Devemos morrer várias mortes em vida, até que a derradeira morte leve-nos do corpo físico para nossa terra do verão. Se nascemos como com uma doença incurável e fadados a perecer, devemos viver intensamente cada segundo como se o fosse o instante fatal. Crer em nossas realizações e construções. Ousar sermos sempre maiores e melhores. Fortalecer nossa intenção mágicka, instrumento indispensável para que a Magia da vida se manifeste. Os medos são impeditivos do crescimento. São como grilhões que nos aprisionam a existências dogmáticas e pueris.

Estendeu a mão com firmeza e, quando as chamas a engoliram, ele OUSAVA. Não tinha mais medo das chamas. E elas não o queimaram.

Atravessou a segunda porta. O Fogo era o Símbolo que nos queima de remorsos em não OUSAR.
Do outro lado, um Jardim florido. Um caminho de pedras levava até uma clareira e, no meio dessa clareira, a terceira porta.
A porta era um entrelaçado de raízes e plantas trepadeiras. Por mais que tentasse enxergar adiante, as folhas se fechavam, não permitindo a visão mais uma vez. Pendendo de um galho, lá estava a chave e ao lado dela a terceira esfinge. Verde, com folhas no lugar da pelagem. Seus olhos eram como duas folhas verdes em plena primavera. Ela disse:

Já sabes que terás que decifrar a chave para passar. Pois mãos à obra.

Pegou a chave e leu:

QUERER

Querer era a própria intenção mágicka, fortalecida pelo OUSAR e possível graças ao SABER. Riu para si mesmo. Não importava o porque estava ali. Nem o que iria encontrar ao final da sua jornada. Apenas sabia que, se ali estava, era onde deveria.
Lembrou-se das épocas de aprendizagem onde tudo, absolutamente tudo era desconhecido e, por isso mesmo, impossível. De quando sua Intenção, ainda não fundamentada, de nada lhe servia. Começou a tentar descobrir quando tinha começado a QUERER.QUERER incondicionalmente. QUERER com todo seu espírito. QUERER mais do que tudo em sua vida.
Descobriu-se novamente diante da assembléia de bruxos e bruxas de sua tradição.Era mais uma vez sua iniciação. Vendado, semi-amarrado, ouvindo vozes e proclamas estranhos a ele que apenas tinha conhecimento intelectual dos rituais de iniciação. O tempo passava, juramentos eram feitos... mas o maior de todos os juramento foi feito quando a ele se deu a LUZ. Encarando a assembléia de bruxos, descobriu que realmente era o que queria. Que nada lhe seria impossível. Que a Natureza desejava ser compreendida. Desse dia em diante, nada mais lhe foi impossível. Ele abriu os olhos, olhou para a esfinge que o encarava com curiosidade... Jogou a chave fora, tão longe no meio do mato, que seria impossível encontra-la mesmo que assim se desejasse. Andou para a porta e ordenou:

Deixe-me passar, pois assim eu QUERO!

A porta se desfez, galhos e raízes se contorciam retornando ao seio da terra. O Símbolo dos impeditivos que não nos permitem florecer e crescer em intenção voltavam a mãe de todos.E a porta já não mais existia.

Além da porta, um quarto de vidro. O próprio som dos seus passos soava de forma estridente, amplificados pelo vidro do chão, das paredes, do teto. Em volta do Vidro nada se via, como se uma noite sem lua ou estrelas se fizesse do outro lado daquelas paredes.
Onde estaria a porta dessa vez? Concentrou-se em seus sentidos. Buscou a porta com olhos, ouvidos, com o tato... finalmente encontrou-a em um canto da sala. Pendendo próximo à fechadura, lá estava a quarta chave. Do outro lado da parede, uma esfinge branca, assim como a neve o observava. Sua bocarra movia-se como se falando, mas nada, nada se ouvia do lado de dentro da sala.
Como já conhecia a rotina, ele observou a escritura na Chave:

CALAR

Pensou no sentido do CALAR. Claro, manter a boca fechada sobre as práticas e costumes de sua doutrina!
Nesse momento, assim como um clarão dentro de sua cabeça surgiu à explicação que contrariava tudo o que achava que sabia sobre o CALAR. Os Deuses tinham dotado os Seres humanos de 2 olhos, 2 narinas, dois ouvidos, 2 mãos, vários dedos... e apenas 1 boca.
O CALAR já não significava o sigilo. Significava agora para ele que, o silêncio era necessário para que pudesse sim OUVIR, TATEAR, VER, compreender e sentir a magia. Isso só é possível CALANDO. Normalmente quando se fala, raramente se escuta o que está à volta. Dificilmente escuta-se inclusive a própria oratória. CALAR era fundamental para permitir aos demais sentidos a compreensão da magia. CALAR permitia o SABER, que fomentava o OUSAR, que só era possível através do QUERER.CALAR para aprender. CALAR para que algum dia pudesse ensinar. CALAR para permitir à NATUREZA que eram os próprios deuses se manifestassem. Não mais o CALAR egoísta de guardar a sete chaves seus conhecimentos, mas o de se permitir a reconhecer os que mereciam OUVIR. CALAR para aprender... CALAR para ensinar.

E ele se CALOU.

As batidas de seu coração foram crescendo de intensidade. A vibração de seu órgão, intensificada pela acústica do vidro começou a vibrar nas paredes. A porta começou a rachar-se. Quebrou-se em milhares de pedaços e uma luz brilhante surgiu.
Estavam estilhaçadas as barreiras surdas que impediam-no de OUVIR.

Atravessou a porta. Não havia mais portas. Apenas um objeto coberto com um pano negro no final da sala.
Ele se aproximou e levantou o pano. Por de trás do pano, um Espelho refletia sua imagem e tudo mais que fazia parte de seu UNIVERSO agora. No umbral desse espelho lia-se:

CONHECE A TI MESMO!

Ele olhou para o espelho com um sorriso nos lábios.Depois de mais essa viagem, sem dúvidas que ele conhecia a si mesmo. Muito mais que no início da mesma.

Acordou. Levantou da cama, já era dia. Entrou no banheiro e se olhou no espelho.

Agora ele já podia se ver por completo.

Fabiano Jacob