quinta-feira, janeiro 10, 2002

O dia amanheceu claro, brisa fresca, sol convidativo...
As árvores balançam e chega pelas narinas o odor do sonho. Esse aroma é característico, talvez alguma rajada divina dando o ar da graça e transbordando inspiração nessa falta de pressa que me toma.
O sorriso aparece espontaneamente e deixo que ele me leve...enleve...transporte...
Em meio ao cálido deleite, começo novamente uma espécie de retrospectiva com afins. Sinto uma familiaridade incrível com Veneza, mesmo nunca tendo sentido a sua real vibração...contudo, um outro tipo de energia envolveu o diálogo ontem. Um misto de cumplicidade e devaneio, sensualidade e entrega, eximido de frescura e pudor.
Encontro alguém para dividir impressões. E em meio às minhas poucas referências, vejo o outro lado ressoando no mesmo diapasão. Diz que se for não volta mais. Diz que ama com fervor e não pode largar o que o prende em busca desse sonho.
O convido a ir comigo, entregar-se aos desejos da carne. Uso a persuasão e tento arrastá-lo para o Carnaval. Desperto sua libido quase de propósito, desafiando sua rigidez ideológica.
Tento deixá-lo com água na boca e vir dividir máscaras comigo, refugiando-se no anonimato, como num flash de Nin. Vejo-nos camuflados, incógnitas no meio de uma multidão travestida e iluminada por um tempo antigo...um tempo que não existe mais. Roupas cheias de babados, maquiagem pesada, silhuetas caricatas. Ao mesmo tempo a bruma cerca de mistério a paisagem...uma gôndola corta o foco para em seguida eu encontrar alguém que olha fixamente para mim. Será ele mais um desconhecido buscando o mesmo que eu? Será ele, ou talvez ela, alguém que se sentiu atraído por minha face transmutada pelo material que a protege?
Um cortejo de cordas interrompe minhas divagações e deixo a música cortar aquele elo formidável e estranho que havia se formado por instantes. Onde estávamos? Eu e minha alma companheira, divididos e unidos por ideais e sentimentos semelhantes. Ele sorri e me abraça forte, me dá um amasso gostoso, esmagando meu peito em seu corpo rijo e enxuto. Gargalhamos como se o barulho lá fora não fosse páreo para a sensação que partilhamos nesse instante. Será que temos jeito? Vamos viver a luxúria em toda a sua densidade, ir fundo nos insólitos prazeres que nos povoa o imaginário...vamos nos soltando...abrindo espaço para o inusitado...queremos provar o novo, essa vontade de matar o desejo que se espalha pelo ar. Será que conseguiremos nos saciar? Ou a mente ainda vai construir mais fantasias para serem vividas plenamente? Com ele ao meu lado esqueço a face religiosa e as noções sociais que me foram vendida como verdade. Estamos construindo a nossa realidade, a verdade que bate à porta da quimera nesse momento.
Sinto-me poderosa ao lado dele, mesmo que ele não me deseje. Diz que sou gostosa, fala de chupadas e diz que vai me ensinar truques e artimanhas. Quero aprender com ele. No fundo, no íntimo, é apenas à vontade de mudar o padrão que tanto me agrada, feito criança que deseja um brinquedo. Vejo, às vezes, essa ânsia predadora, pronta ao ataque, como a grande cabeça de aríete a romper os portões dos castelos.
Da mesma forma a doçura envolve meus sentidos, freando meu ímpeto marciano, alegando que devo preservar o que já possuo, tentando me convencer que isso só passa de delírio. Será? Delírio? Verdade?Prazer? Falo outra vez em dominação, em armas bélicas fantásticas.Surge os milhões de apetrechos e perversões. Ainda vou escrever só sobre isso um dia. Um dia...
Ele me puxa pelo braço e me traz novamente à cidade guardada pelo mar de Iemanjá. E sorri. Gera um movimento único ao seu redor, como um chamado, um banquete a ser descoberto...
Ele diz que nossos corpos não se uniriam, que ficaríamos a gargalhar sobre os lençóis de cetim branco, feito duas loucas a despejar todo tipo de delírio que nos sobrasse ainda na alma...se é que sobraria...
Ele vai, despede-se e fico ainda nos imaginando incógnitas perambulando por becos e ruelas, com um bom tinto e taças já usadas entre os dedos, unidos por essa energia ancestral, à magia que nos liga quando trocamos sensações. Às vezes, o acho tão parecido comigo...
Acordo, sentada na rampa do âmago, crio uma forma-pensamento...fomos e voltamos à Veneza e só agora nos demos conta.