terça-feira, janeiro 01, 2002

A notícia veio como ela num sopro violento, quando o redemoinho gira, deixa tonto, revolve folhas, restos, pedaços que foram jogados pelo chão, anunciando uma mudança: Cássia Eller morreu! No exato instante eu trabalhava, estava concentrada em números, algumas planilhas e fiquei de boca aberta, com aquela sensação de vazio, de impotência, quando a morte nos carrega alguém querido, familiar, precioso.
Para mim ela era jóia, uma espécie rara, daquelas difíceis de tirar da rocha, algo pouco lapidado externamente, mas que por dentro conservava aquele quilate raro, difícil de encontrar por aí, por esse mundão que caminho...
Cássia mãe, Cássia roqueira, Cássia menina, Cássia ela, sim, toda majestade. Cantando Cazuza, com sua malandragem explícita, me revolvia memórias adolescentes, aquelas que a gente vive e guarda num espaço do sonho que insiste até hoje. Em Cássia via Cazuza, revivido numa roupagem rouca, possante, poderosa. Via nela aquele toque poético, melancólico, aquela boemia que não gosta da vida, do cotidiano nublado, que mergulha nos psicotrópicos para alcançar o nirvana, o inatingível, o nagual celeste, numa fusão de mostros e deuses pagãos, em estados alterados de consciência. Um toque levado ao mundo colorido de rosa dos piscianos, onde a conexão com o divino acaba sendo possível, numa rota de fuga do banal, do comum.
Ontem, chegando a Copa, levando as flores a mãezinha, Zélia Duncan arrebentava no microfone, bradando aos quatro ventos, aos quatro guardiães do tempo: esse show é dedicado à Cássia Eller, a inesquecível! E eu olhando as palmas brancas em uma das mãos, sentia aquela presença que não me deixou desde a primeira notícia. O Reveillon viveu as lágrimas dos fãs, dos que tiveram um pedaço tirado. Um Renato Russo apaixonado, um Renato Russo revivido numa canção do acústico.
Os céus pipocam corações, flores, cores, como num imenso caleidoscópio, denunciando a chegada de mais um ano. E Gabriel cantou e dedicou a noite a ela, a Cássia. O nome ecoou forte em minha cabeça: Cássia, Cássia, Cássia. Quem sabe se eu um dia tiver uma filha, quem sabe....
A noite apesar da alegria, dos abraços, dos amigos que riam, do champanhe estourado, das guloseimas saboreadas, continuou com essa temperatura alquebrada, quando eu me pergunto o sentido, pergunto ao Cristo o sentido disso tudo.
E por mais que seja overdose, consumo de drogas, me encanto com os compulsivos. Com aqueles que vivem no limite, justamente porque tenho muito dessa paixão sem acomodação, os 'cavalos selvagens' desafiadores da realidade, impulsionando a paixão, o estar vivo, pulsando fortemente, com descompasso, com a vida. Em Cássia, via essa compulsão. A mesma que cerca os grandes gênios, as artes, a entrega total sem consequências, sem consciência e sem culpa. Aliás, pra que comedimento? Quero mais é viver e me perder, largar pela existência um alma viva, sem fronteiras, muros sociais previsíveis.
As idéias estalam e preciso concatená-las. Queria escrever de sopetão, sem revisão. Mas, por incrível que pareça as coisas acabam ficando assim, partidas, aos pedaços, como num grande bolo de chocolate. Fatias poderosas que vão sendo engolidas pela grande senhora, a morte.